O MAL SOBRE A TERRA, OU A HISTÓRIA
DO TERREMOTO DE LISBOA EM 1755
Maria Yedda Leite Linhares
Professora Emérita, UFRJ
O fato único e isolado ao longo da História ocidental
mereceu algumas análises memoráveis, a começar pela versão de Shakespeare
da batalha de Azincourt, enfrentada por Henrique V, assim como a
de outra batalha decisiva, Bouvines, concebida por Georges Duby.
Ainda no campo do confronto de forças de combate, destaca-se o relato
do nosso Euclides da Cunha, a "Luta", em Os Sertões. Outros
poderiam ser lembrados, ligados, na sua maioria, a episódios e situações
de confronto militar, de poder e de dominação. No caso do terremoto
de Lisboa de 1755, a situação histórica e dramática, humana e jornalística
é bem diversa. Trata-se de abordar, no plano e na concepção de uma
complexa e moderna história cultural, um fenômeno sísmico - um terremoto
- que durou menos de 10 minutos, destruiu Lisboa, estendeu-se como
um maremoto pelo Tejo, provocando danos inestimáveis em vidas humanas,
edificações, embarcações, perda de bens materiais e artísticos dos
mais preciosos, tesouros de igrejas e palácios reais, além de mercadorias
armazenadas na Alfândega.
Mary del Priore, com sensibilidade, estilo, bom
gosto e domínio seguro da historiografia pertinente, bem como da
documentação arquivística arrolada na Europa, comprova que o historiador,
ao construir e desenvolver o seu objeto de estudo, precisa ter experiência
profissional e o controle do tema a ser visto ao microscópio. Nossa
historiadora faz tudo isso com erudição segura e elegância de estilo,
tornando a leitura extremamente prazerosa. Assim, é possível ao
leitor, sobretudo nos dois primeiros capítulos, acompanhar os relatos
dos que presenciaram o terremoto, estrangeiros residentes em Lisboa,
como Jacome Ratton, ainda jovem naquele momento, e outros que vivenciaram
o terror. A autora demonstra que é possível combinar erudição e
estilo ao descrever ocorrências e episódios como os daqueles minutos
que arrasaram uma cidade e, ao mesmo tempo, olhar além, para a figura
do fidalgo Sebastião José de Carvalho e Mello que emerge, com força
e energia, ao lado do novo rei d. José I.
Mary del Priore vai mais longe, ao apresentar
uma Lisboa sem fausto, feia, insalubre, malcheirosa, perigosa, miserável.
Afinal de contas, nessa virada do meado do século XVIII estava comprovado
que o ouro e os diamantes das Minas Gerais não eram inesgotáveis.
No entanto, era preciso reconstruir Lisboa, achar novas fontes de
riqueza. O primeiro-ministro do rei d. José, e futuro marquês de
Pombal, preparava-se para chegar ao proscênio, todo poderoso, e
pôr em prática o seu projeto de mercantilismo ilustrado, tendo para
isso que afastar os jesuítas, tomar medidas modernizantes com relação
ao Brasil, acionar a Inquisição se necessário, como foi no caso
da prisão e da condenação do padre Gabriel Malagrida, missionário
apostólico, numa espécie de ensaio que precedeu a interdição da
Companhia de Jesus.
Mary del Priore é não apenas doutora em História
como também, e sobretudo, uma historiadora e professora universitária
que sabe narrar histórias vivas e vividas, de homens e mulheres
que habitavam o lado de lá do Atlântico ou o lado de cá da América,
trabalhando num cotidiano que pode ter sido rico e ilustrado mas
que, na maioria dos casos, e na maior parte do tempo, foi duro e
cruel. Autora de vários livros, como a História das mulheres
no Brasil, onde figura como autora e organizadora (Contexto
e UNESP, 1997); Revisão do Paraíso, 500 anos e continuamos os
mesmos, em que estão reunidos artigos de pesquisadores de várias
partes do país (Campus, 2000); Esquecidos por Deus, monstros
no mundo europeu e ibero-americano - séculos XVI e XVIII (Companhia
das Letras, 2000), Mary del Priore tem o dom da narrativa histórica,
o domínio das fontes e da erudição do tema ao qual se dedica, a
sensibilidade indispensável para perceber a diferença e dialogar
com seus autores/atores/informantes e, ainda, formar alunos, despertar
vocações.
Mas, e o terremoto? Por que estudar o terremoto
de 1755? Repetimos a indagação que ela mesma se faz: o que terá
ele significado para aqueles que o sofreram? Medo, morte, calamidade,
furor da terra, castigo divino, responde. Segundo o historiador,
na percepção de nossa autora, pode ser o ponto-de-partida para a
compreensão de alguns aspectos da sociedade portuguesa: mudança
e permanência, estabilidade das estruturas, predomínio do mundo
agrário e da aristocracia senhorial, leiga e eclesiástica; monarquia
absoluta e política econômica mercantilista. O meado do século prenuncia,
assim, a mudança que virá com dom José, o monarca, e seu onipotente
ministro, o marquês de Pombal, quando duas visões distintas do mundo
se defrontam. Como diz Mary del Priore, "o terremoto foi um fato
histórico, fragmento de uma realidade, com significados múltiplos",
levando em conta vida e vozes dos que o assistiram, e sobreviveram.
E conclui, inspirada em Pierre Nora: "o terremoto de Lisboa é como
um espelho de uma sociedade dilacerada entre dois tempos".
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