MAIS DE WILSON MARTINS
O crítico literário Wilson
Martins morreu sábado, em Curitiba, aos 88 anos. Ele faleceu
de consequência de uma cirurgia para retirada da bexiga, no
Hospital Nossa Senhora das Graças, na capital paranaense,
cidade onde era radicado havia muitos anos, apesar de nascido em
São Paulo, em 1921.
Wilson Martins trabalhou em vários periódicos
brasileiros, assinando seu rodapé de crítica literária
no Estado, onde teve seu primeiro emprego, Jornal do Brasil,
O Globo e Correio do Povo, entre muitos outros. Publicou inúmeros
ensaios no Suplemento Literário de O Estado de S. Paulo.
Autor de diversas obras, destacou-se por sua
monumental História da Inteligência Brasileira, composta
de diversos volumes. Igualmente fundamental é a sua Crítica
Literária no Brasil, história da atividade crítica
em nosso País, exposta em dois sólidos volumes de
análise cerrada. Com suas obras, Martins ganhou alguns dos
principais prêmios literários nacionais, com o Jabuti,
da Câmara Brasileira do Livro e o Prêmio Machado de
Assis, da Academia Brasileira de Letras.
Wilson Martins foi também professor de
Literatura Francesa na Universidade Federal do Paraná e lecionou
por 26 anos em Nova York. No entanto, apesar da sólida carreira
acadêmica, era na crítica literária jornalística
que se sentia mais em casa. Era um crítico de “linha
de frente”, quer dizer, aquele que analisa obras no calor
da hora, assim que os livros saem do prelo, ao contrário
de colegas acadêmicos, que esperam pela decantação
das obras por décadas antes de pronunciar-se.
Foi nesse âmbito jornalístico, do
texto escrito sob pressão e contra o tempo, que se tornou
conhecido e amealhou respeito geral – mesmo daqueles que desaprovavam
suas opiniões e às vezes o tachavam de conservador.
Martins nunca se eximiu de escrever o que pensava, como, por exemplo,
quando desaprovou o romance O Fotógrafo, de Cristóvão
Tezza, que admirava, mas dizia conter palavrões em excesso.
Quando completou 80 anos, a editora Top Books
lançou um volume em sua homenagem, significativamente intitulado
Mestre da Crítica. Nele, escrevem colegas ilustres como Affonso
Romano de Sant’Anna, Moacyr Scliar, Edson Nery da Fonseca,
Antonio Candido e outros, tendo por tema a carreira do crítico
Wilson Martins, ou assuntos literários em geral.
Mas o melhor dos ensaios do livro é assinado
pelo próprio homenageado. Com o título de O Crítico
por Ele Mesmo, Martins faz um resumo de sua vida profissional, escrito
com despojamento, clareza e elegância. O texto serve como
testamento de uma carreira e também pode funcionar como inspiração
a quem pretenda segui-la, apesar dos percalços atuais do
jornalismo cultural.
Martins se dizia educado pelo “sistema
antigo, de rigor, disciplina e obediência, sem excessos de
complacência”. Sua base cultural foi formada em especial
pelo autodidatismo. Lia sem parar, desde criança, e, mais
tarde, escrever sobre aquilo que lia lhe pareceu tão natural
como beber um copo d’água. Seu primeiro emprego como
crítico foi no Estado de S. Paulo, em substituição
ao então mitológico Sergio Milliet.
Desde o inicio, Martins não negligenciou
o fato de que para apreciar uma obra era preciso compará-la.
E o cânone literário, hoje descartado como politicamente
incorreto, seria a melhor tábua de comparação
disponível. Mesmo porque ele não foi formado de maneira
arbitrária, mas por um consenso que vem de um longo assentimento.
Shakespeare, Proust, Machado de Assis não ocupam o lugar
que ocupam por acaso. O alvo dessas críticas de Martins era
o multiculturalismo e o relativismo, que coloca toda e qualquer
obra em pé de igualdade. Isso seria nivelar a cultura por
baixo, segundo entendia.
Portanto, é a qualidade da obra que deveria
nortear a crítica, mesmo que seja tão difícil
distinguir, no novo, o que é bom do que não é.
Tentá-lo, e chegar o mais próximo possível
da “verdade”, é a tarefa do crítico, como
ele a concebia. Apontar o que é bom em sua época,
o maior desafio daquele que escreve sobre obras alheias. O crítico
faz suas apostas. A posteridade julga as obras, e o próprio
crítico.
Nesse ponto, como se vê, Martins valorizava
seu ofício de crítico “de fronteira”,
distinguindo-se claramente dos colegas de universidade. Estes escrevem
ensaios. Você pode escrever um ensaio sobre Graciliano Ramos,
ou sobre James Joyce, sabendo que milhares de outros já escreveram
a respeito. “O pesquisador universitário só
escreve um longo ensaio sobre José de Alencar depois que
a crítica disse que José de Alencar é um autor
que merece um longo ensaio.” O ensaísmo aparece depois
que a crítica já disse o que tinha a dizer. A crítica
é trabalho de desbravadores e se faz no calor da hora.
Desse modo, colocar sua posição
diante de um livro novo, recém-saído do prelo, é
uma atividade de risco. O que faz da crítica uma atividade
polêmica. Embora o crítico não deva buscar a
polêmica por si, precisa sustentá-la, se for o caso.
E seu aliado natural será o leitor, pois nenhuma atividade
intelectual, inclusive a crítica, se sustenta se não
tiver um leitor cúmplice e inteligente que com ela dialogue
e participe da polêmica. A exemplo do romancista, o crítico
também precisa de um público para existir.
Martins era um profissional rigoroso, mas não
se definia com um crítico “científico”,
mesmo porque duvidava que essa categoria existisse. Tinha medo de
que disciplinas como o estruturalismo e a semiologia gerassem tal
grau de certeza no intérprete que o levasse a posições
dogmáticas e fechadas. A atividade crítica como ciência
exata é, segundo Martins, uma indestrutível quimera
do pensamento literário. Refere-se à utopia da opinião
que não pode ser contraditada por outra opinião. O
que não implica no extremo oposto, o relativismo selvagem,
o vale-tudo opinativo.
A crítica é o desenvolvimento por
escrito de uma opinião, assinada por alguém que realmente
conheça o assunto e tenha a embasá-lo uma cultura
geral tão vasta quanto possível. Isso implica, também,
a recusa da especialização – “quem sabe
só literatura não sabe nem literatura”, diz.
Mas a erudição de nada vale sem a intuição,
e vice-versa.
Sempre provocativo, Martins se dizia “o
último crítico literário em atividade”.
Talvez tenha sido mesmo.
O ESTADO DE S.PAULO
01/02/2010
|