OS SEGREDOS DE UMA PRISIONEIRA ESQUECIDA
A jornalista Denise Assis pesquisou por
20 anos o drama da freira Maurina Borges, torturada pela ditadura,
e transformou as dúvidas sobre sua história em ficção
no livro ‘Imaculada’
Bolívar Torres
Denise Assis
Foto: Mônica Imbuzeiro
Assessora da Comissão da Verdade do
Rio, a jornalista Denise Assis vive assombrada por interrogações,
mistérios e lacunas. Desde maio deste ano, ela investiga, em
uma sala do Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro, o
destino de 148 desaparecidos ou mortos durante a ditadura militar.
Uma rotina em que se equilibram as funções de historiador,
detetive, guardião da memória, entre muitas outras responsabilidades.
O trabalho exige paciência e esmero,
um mergulho nos arquivos confidenciais, registros de polícia
— uma infinitude de fichas e listas que, ao serem cruzadas
e associadas, abrem frestas para um dos períodos mais sombrios
do país. Cada pasta empoeirada pode esconder uma pista. Um
desfecho. Um consolo para as famílias daqueles que sumiram
inexplicavelmente do radar da sociedade.
— Durmo e acordo pensando no destino destes
procurados — conta Denise. — É uma preocupação
constante, porque existe uma expectativa enorme da sociedade e,
principalmente, dos familiares. A cada uma dessas pessoas corresponde
um drama.
Trajetórias interrompidas e histórias
mal contadas sempre moveram a carreira de Denise. Mas há
uma, em especial, que nunca saiu da sua mira: trata-se do caso de
Maurina Borges da Silveira, uma freira presa por “atividades
subversivas”. O fato real rendeu a Denise uma série
de reportagens publicadas no “Jornal do Brasil” em 2003.
E serviu de inspiração para a protagonista fictícia
de seu primeiro romance histórico, “Imaculada”
(Topbooks), lançado no último dia 8, em uma
rara pausa no seu trabalho para a Comissão da Verdade.
Em 1969, Maurina dirigia um orfanato de Ribeirão
Preto, no interior de São Paulo, quando foi avisada de que
deveria esconder da polícia panfletos políticos e
outros materiais “subversivos” pertencentes a jovens
militantes que se reuniam no abrigo. Mais tarde, a freira justificou
em uma carta que apenas pensava em proteger as crianças da
instituição. Exilada no México contra sua vontade
— em uma ainda mal esclarecida negociação que
envolveu Igreja, militantes de esquerda e militares — suplicou
para responder ao processo no Brasil, independentemente do que aquilo
lhe custasse.
Embora desconhecido da opinião pública,
o caso chegou aos ouvidos de Denise em 1977, na época recém-formada
em jornalismo. Naquele momento, corria o rumor de que a madre teria
sido abusada por seus torturadores — e engravidado. O fato
embaraçoso — tanto para a Igreja quanto para o governo
— explicaria o seu exílio forçado e todas as
negativas posteriores para que voltasse ao país.
Obcecada por pontas soltas, a jornalista passou
mais de 20 anos tentando remontar o percurso de Maurina. Acessando
arquivos até então secretos, descobriu que o próprio
Ministro da Justiça de Emílio Garrastazu Médici,
Alfredo Buzaid, ficou perplexo quando o governo obstruiu, por meios
inconstitucionais, o regresso da exilada ao Brasil. Afinal, a madre
poderia se tornar um símbolo da luta contra a violência
do regime.
Não há provas de que Maurina engravidou.
Pelo que foi constatado, a hipótese parece improvável.
Em suas investigações, porém, Denise recuperou
uma carta desconcertante, em que a religiosa relata como foi abusada
por seus torturadores. Passando a mão em seus joelhos, um
deles a atormentou com provocações: “Vamos,
me dá uma colher de chá... Pensa que eu estou há
dias longe da minha mulher!...” Em outra carta, endereçada
a Buzaid em 1971, a madre reitera seu desejo de ser julgada no Brasil:
“Tenho eu obrigações para com o meu país,
demonstrar a minha inocência”, insistiu. Com a anistia
de 1979, Maurina enfim regressou. Denise conseguiu localizá-la
sete anos antes de sua morte, em 2011. Encontrou-a adoentada em
um convento no interior de São Paulo, mas a congregação
proibiu a madre de relatar o seu passado.
— Ela estava disposta a falar, reconhecia
que já era hora de recuperar este assunto. Mas não
pôde — lembra Denise. — O que me impressiona é
que ela se manteve fiel aos dogmas religiosos, perdoando seus torturadores.
Com o jornalismo, confirmei muitas indagações, mas
não a história da gravidez. O fato de não se
configurar verdadeira não atenua os horrores enfrentados
por ela, mas ainda assim era a grande pergunta em torno de seu nome.
O romance tenta respondê-la da minha maneira. Na ficção
tudo é possível.
A freira de “Imaculada” vive um drama
semelhante ao de Maurina. Mas Denise faz questão de esclarecer
que compôs um personagem romanesco. No voo livre da ficção,
a jornalista se autoriza a criar fatos não confirmados. Também
narra sentimentos que não cabiam na esfera objetiva do jornalismo.
Realça o medo, os dilemas e, principalmente, a perplexidade
de uma vítima inocente. Como reagir à repressão
absurda, injusta e desumana?
— Ficamos vinte anos sem tratar o tema
da ditadura com a profundidade e a assiduidade que ele merece —
avalia a jornalista. — Talvez a ficção seja
uma maneira de fazer com que a dimensão deste período
seja compreendida. Acredito que a ditadura não pode ser dividida
em diferentes fases, algumas mais brandas, outras mais duras. É
um bloco só: a perda da liberdade. É a opressão.
Caderno Prosa & Verso
O GLOBO
12/10/2013
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