A EXATIDÃO DO OCEANO
Aos 80 anos, Lêdo Ivo é homenageado
com lançamento de poesia completa e exposição
Mànya Millen
Por favor, eu poderia falar com o senhor Lêdo
Ivo?". Do outro lado da linha, sotaque ligeiramente arrastado,
o recepcionista do hotel Ritz Lagoa da Anta, em Maceió, retruca,
no tom delicado mas algo irônico de quem corrige uma informação:
"Minha senhora, Lêdo Ivo é um salão. É
o nome de um dos salões do hotel". O jovem atendente
talvez desconhecesse naquela hora que Lêdo Ivo, bem mais que
um salão que o homenageia, ainda é um dos maiores
poetas em atividade no Brasil, legítimo filho da Maceió
que deixou aos 18 anos, mas que sempre carregou em sua poesia. E
que, naquele momento, era um hóspede ilustre do hotel da
capital, onde estava para receber a devida celebração
no ano em que completou oito décadas de vida (em fevereiro)
e 60 anos de dedicação aos versos.
- Nasci numa terra que é um Brasil diferente,
um estado lindo. E ele me trata muito carinhosamente, me sinto muito
confortado - conta o poeta, depois de dar boas risadas com a história
do auditório homônimo, ocorrida na segunda-feira.
Em Maceió, Lêdo Ivo - que revive
a nostalgia da terra impregnando seus versos com as lembranças,
cheiros e visões de Alagoas - fez ontem o pré-lançamento
de sua "Poesia completa", um encorpado volume de 1.099
páginas editado pela Topbooks/Braskem englobando 23 livros,
de "As imaginações" (1940-1943) até
"Plenilúnio" (publicado em junho último
pela mesma Topbooks). No próximo dia 30, o livro será
lançado na Academia Brasileira de Letras, no Rio, durante
a abertura de uma grande exposição de fotografias
com a qual a casa de Machado de Assis vai homenagear o alagoano
que, em 1986, tornou-se um de seus imortais.
Tanta vida, tanta poesia e tanta homenagem arrancam
de Ivo, além de felicidade, uma boa história.
- João Cabral (de Melo Neto), meu grande
amigo, dizia que eu deveria ter morrido aos 21 anos, porque assim
eu me transformaria no Rimbaud do Brasil. Ou no mínimo no
Castro Alves do século XX. Mas eu dizia que preferia ser
o Victor Hugo das Alagoas. E meu desejo se cumpriu - diz Ivo, às
gargalhadas.
Aos 80 anos, o poeta comemora não apenas
a existência longeva como a permanência da qualidade
em sua obra, comprovada por críticos do quilate de Antonio
Candido que, em carta a Lêdo Ivo pouco depois do lançamento
de "Plenilúnio", escreveu: "(...) Não
lia versos seus havia muito tempo, e esta leitura me fez encontrar
um Lêdo Ivo que é o mesmo e também outro. A
mesma força que vem de dentro e arrebenta no verso, o mesmo
virtuosismo que parece descobrir sentidos novos em cada palavra,
a mesma capacidade transfiguradora que faz da expressão corrente
uma linguagem nova. Mas parece que o teor musical das palavras mudou,
gerando sonoridades atenuadas que as aproximam da fala, sem qualquer
prosaísmo. O seu verso tem neste livro uma espécie
de equilíbrio oscilante que prende o leitor, inclusive porque
parece ao mesmo tempo solto e metrificado, de maneira a ficar diferente
das praxes. Uma lição de poesia para tanto desnorteio
da hora presente".
- Sempre convivi com grandes poetas e concordo
que vários deles, do meu convívio pessoal, quando
atingiram os 80 anos começaram a fraquejar - observa Ivo.
- Dizem os críticos que minha aventura pessoal tem sido diferente.
Mudei muito continuando o mesmo. O que sempre desejei ser como poeta
talvez tenha se realizado. Sou o poeta do exato, mas minha exatidão
não é a da caixa de fósforos, e sim a do oceano.
Essa exatidão caudalosa, longe de ser
um contra-senso, seria a tradução, segundo Ivo, da
junção de seus versos "longos, respiratórios,
desdobrados" com a preocupação perene com a forma
rigorosa. Localizado na chamada Geração de 45, e considerado,
conta ele, a ovelha negra do bloco, Ivo lembra que não se
sente um legítimo representante dela e se considera um escritor
transgeracional:
- Os poetas da minha geração costumavam
fazer versos homeopáticos, lacônicos. Mas o importante
não é o movimento literário, porque uma literatura
só é rica na medida em que pode oferecer figuras diferentes
em uma mesma geração. A literatura não é
uma voz única.
Juventude deveria buscar voz pessoal
Embora revele acompanhar pouco a produção
literária contemporânea no Brasil, Lêdo Ivo faz
uma observação: diz ter notado que a poesia jovem
é "muito reducionista".
- Na minha opinião são poetas sem
ambição. E, num certo sentido, muitos ainda se voltam
para vanguardas já requentadas. Pensam que a poesia começou
com Oswald de Andrade. De modo que eles deveriam ser mais ambiciosos
e procurar ter uma voz pessoal.
Poesia das Alagoas que se espelha no mundo
Lêdo Ivo, que bebeu em Valéry e Rilke, lembra que "são
os poetas que vieram antes que o ensinam a ser poeta"
A leitura de "Poesia completa" não
deixa dúvida de que Lêdo Ivo é um autor de sua
terra. "O Nordeste, para mim, é a pátria da imaginação
brasileira", diz ele, que cantou Maceió e Alagoas em
verso e prosa. Mas os 23 livros evidenciam também a universalidade
da obra de Ivo, que desde pequeno bebeu em fontes poéticas
como Valéry e Rilke, e lia de tudo, desde "bula de remédio
até Goethe".
- Sem conhecer a poesia anterior à sua
você tem poucas condições de ser poeta. São
os poetas que vieram antes que o ensinam a ser poeta - afirma ele.
- E a função do escritor é dizer com uma voz
nova aquilo que já foi dito.
Os poemas também evidenciam outra paixão
de Ivo, as viagens pelo mundo, a maioria feita em companhia da mulher
Lêda, que morreu este ano.
- Para mim é muito difícil falar
dela. Enviuvei exatamente no ano em que completaríamos 60
anos de convívio, pois a conheci em 1944 e nos casamos em
1946 - lembra ele. - Ela era muito presente em minha obra e essa
"Poesia completa" é dedicada a ela.
Na mostra da ABL, o grande amor, os amigos,
as viagens
Dona Lêda também ganhou um módulo
em sua homenagem na exposição "O universo poético
de Lêdo Ivo", que será inaugurada no dia 30 de
setembro na Academia Brasileira de Letras. Organizada pelo museólogo
Anselmo Maciel, ela tem aproximadamente dez módulos, que
vão mostrar a infância do poeta, seu início
na vida literária, suas viagens, os amigos, a imortalidade
na ABL.
E depois das homenagens, o silêncio. Por
ter lançado um livro este ano, Lêdo Ivo diz que vai
passar os próximos dois quieto, sem produzir nada.
- Eu tenho um período de recesso, me sinto
uma espécie de piscina vazia. Preciso de um tempo para enchê-la
novamente - brinca ele.
Caderno Prosa & Verso
O GLOBO
Rio de Janeiro
25/09/2004 |