O POETA DE TODOS OS IDIOMAS DA DÚVIDA
A escrita como uma forma de celebrar o mistério
e as aéreas raízes divinas do humano
Poesia completa, de Lêdo Ivo. Editora
Topbooks / Braskem, 1.099 pgs. / R$ 69
Miguel Sanches Neto
Vocação prematura para a poesia,
tendo escrito seu primeiro poema aos 14 anos, Lêdo Ivo (1924)
cultivou, em toda a sua obra, a vitalidade e a inquietação
criativas, que agora podem ser acompanhadas na leitura de sua "Poesia
completa", com prefácio do poeta e ensaísta Ivan
Junqueira - volume indispensável para qualquer leitor sério
de poesia. Em nenhum momento de seu extenso percurso literário,
encontramos deflação de entusiasmo ou descrença
no poder da palavra. O poeta está sempre convicto de sua
missão de criador que se comunica concomitantemente com o
mistério e a realidade, com divindades obscuras e homens
sofridos. Do choque destes dois pólos nascem poemas memoráveis.
Sua produção mais matinal, surgida
no período em que a Geração de 45 estava em
cena, não se deixou dominar pela intransigência de
conceitos, embora traga as preocupações da época.
Entre a vertente classicizante e a surrealista desta geração,
Lêdo Ivo se aproxima da última, em busca de um verbo
oceânico, que não fica preso nem ao nacional nem ao
formal, temáticas restritivas. Seus versos são extensos
e o poeta canta principalmente o inefável. Em "Imaginações"
(1944), reivindicando uma perspectiva universal, dirige-se, significativamente,
à figura paterna, em uma recusa à casa e à
paisagem familiares: "Pai, meus pensamentos não cabem
na tua sala com piano tranqüilo a um lado e escuras cadeiras
vazias perto da janela" (p.72). No volume seguinte ("Ode
e elegia", 1945), impõe-se o "Canto da imaginária
janela aberta", em que ele reafirma seu vínculo com
o mundo vasto mundo, negando qualquer aprisionamento e retomando
versos extensos que não cabem na sala burguesa de nossa poesia.
Nesta fase, apesar dos sofrimentos da guerra, o poeta enaltece a
alegria da palavra, seu poder restaurador: "Oh, sou apenas
um poeta que não quer cantar as coisas da decrepitude"
(p.111), credo a que se mantém fiel.
Nas palavras em estado lírico ele via
um amanhecer (no sentido histórico e metafísico),
o que tornava a poesia uma necessidade de celebração
do intangível, a poesia como caminho para o absoluto, onde
residem as coisas que não se deixam perecer. Defendendo a
inspiração, subverteu a hegemonia do racionalismo
estético em "O acontecimento do soneto" (1948),
ao mostrar que mesmo esta forma matemática é antes
um alumbramento: "Não se faz um soneto; ele acontece"
(p.118). Tal prática o leva a conjugar a imaginação
desbragada a um senso de medida, valendo-se alternadamente dos dois
expedientes.
A cada livro, sem nunca deixar de dar respostas
às questões do presente, nem de se manter fiel a seu
ser profundo, Lêdo Ivo elide os contrários, desfazendo
definitivamente o antagonismo equivocado entre modernidade e tradição
("mergulhado no passado,/ cada vez mais moderno e antigo",
p. 115). E seus livros vão sendo levantados contra tais simplificações.
Sem nunca renunciar ao verbo transcendente, ele vai tratar de temas
sociais (principalmente em "Estação central",
1964); exercita composições longas (cântico,
ode, elegia, poema dramático) e pratica, a seu tempo, sonetos,
poemas singelos ("O soldado raso", 1980) e haicais; passa
dos grandes questionamentos metafísicos ao humorístico
e à poesia amorosa, uma de suas dicções constantes.
É impossível definir poeta com
tamanha complexidade, que elege como eixo do mundo a eternidade
("ó meu país natal, eternidade", p. 235),
mas também a linguagem ("Ó minha linguagem, ó
meu país natal", p. 332) e por fim seu pago palustre
("Minha pátria não é a língua portuguesa
[...] é a terra mole e peganhenta onde nasci", p. 1027).
Estas latitudes múltiplas fazem de Lêdo Ivo um dos
casos mais densos de nossa poesia.
Ignorando a vanguarda cega, que negava o verso,
e as verdades partidárias, praticou inúmeros gêneros
poéticos sempre com um desejo de vencer o fungível,
de conquistar uma sintaxe que, sem ser propriamente hermética,
estabelece conexão com realidades mais profundas, muitas
vezes flagradas no cotidiano degradado da cidade dos homens.
Em tudo que escreveu, encontramos em primeiro
plano a vastidão poética, que não tem na folha
em branco uma inimiga, mas uma aliada. Escrever tem sido para ele
uma forma de celebrar o mistério, as aéreas raízes
divinas do humano, tentando fazer da linguagem ponto de encontro
entre o eterno e o efêmero.
Se a tendência de todo poeta é ir
construindo certezas, para fornecer em série as respostas
esperadas por seus leitores, em um processo de fechamento de sentido
(um exemplo disso está em João Cabral de Melo Neto),
o grande diferencial de Lêdo Ivo é problematizar cada
vez mais suas inquietações, produzindo uma poesia
em que os excessos verbais e metafóricos não são
gratuitos - eles fazem parte de uma tendência para a ambigüidade
e para aquilo que está além das experiências
biográficas. Neste longo percurso, o poeta vem soletrando
virilmente, à luz do crepúsculo ou da lua, todos os
idiomas da dúvida.
MIGUEL SANCHES NETO é escritor.
Caderno Prosa & Verso
O GLOBO
Rio de Janeiro
25/09/2004 |