A VOLTA DO 'GAGOGÊNIO'
Coletânea de Carpeaux reúne 205
textos publicados na imprensa e jamais compilados em livro
Paula Barcellos
"É uma felicidade: resolver
problemas. Mas acontece mais raramente do que se pensa. Às
vezes os problemas parecem surgir para a gente reconhecer que não
podem ser resolvidos. O verdadeiro mérito talvez seja de
quem descobre um problema novo, encaminhando-o à discussão.
E se evita a desorientação num mundo de certezas ilusórias".
Pois foi assim que Otto Maria Carpeaux iniciou seu artigo ''Machado
e Bandeira'', publicado no jornal O Estado de S. Paulo, em 24 de
janeiro de 1959. As palavras do jornalista e crítico literário
austríaco, que chegou ao Brasil em 1939, refugiado da Guerra,
e por aqui ficou até sua morte em 1978, deveriam ter sido
escritas também para ele. Aglutinador e carismático,
sobretudo provocador sempre, esse intelectual ''gagogênio''
(como os amigos o apelidaram) deixou de herança um rico arsenal
de inquietações literárias, políticas,
sociológicas. Muitas delas até agora sem respostas,
como se pode constatar em Ensaios reunidos: 1946-1971 (volume 2),
organizado por Christine Ajuz.
Com prefácio do imortal Ivan Junqueira,
a obra reúne 205 textos de Carpeaux, publicados na imprensa,
e jamais compilados em livro, além de três prefácios
dedicados a Manuel Bandeira, Goethe e Hemingway. Desde 1999, quando
a Topbooks, em parceria com a UniverCidade, lançou o primeiro
volume, organizado por Olavo de Carvalho, os pesquisadores do projeto
fizeram um verdadeiro malabarismo para ter acesso ao material desta
edição. O estado dos textos era o pior possível:
praticamente ilegíveis, tiveram que ser redigitados. Com
um empecilho extra: quase todos tinham parágrafos truncados,
o que fez a equipe recorrer à seção de periódicos
da Biblioteca Nacional. Problema resolvido? Longe disso. As constantes
greves na instituição atrasaram ainda mais a empreitada.
Mas nada que enfraquecesse os ânimos da publicação.
Pelo contrário. Como a pesquisa, por questões técnicas,
foi prolongada, mais material foi encontrado, o que resultará
em um novo volume do projeto Obra Completa do editor José
Mario Pereira.
De Napoleão a Vinicius de Moraes, passando
por Kafka, T.S. Eliot, Machado de Assis, James Joyce, além
da análise, no calor da hora, do filósofo Jean-Paul
Sartre, Carpeaux, de forma clara e intensa, sem abusar na erudição
ou no hermetismo, transitava pelos mais diversos meios e pensamentos
(vide extenso e pertinente índice onomástico com mais
de 50 páginas). Escrevia em jornal para um público
vastíssimo e tinha ciência disso: ''Não
se faz crítica literária em jornal para desempenhar
um papel de verdadeira ou falsa importância nos círculos
limitados da vida literária. Tenho o direito de elogiar a
vontade de escrever simples, porque já pequei também
muitas vezes contra essa regra. A linguagem técnica constantemente
empregada inspira a suspeita de servir como a roupa imaginária
do rei no conhecido conto de Andersen: os cortesãos lhe elogiaram
a roupa, mas enfim se descobriu que o rei estava nu'', ressaltou
em 15 de outubro de 1960, no artigo ''Críticos novos''.
A utilização da metáfora
e do total domínio do campo semântico são marcas
características dos textos de Carpeaux. Para falar, por exemplo,
sobre as ''Tendências do moderno romance brasileiro'', em
3 de outubro de 1948, ele partiu literalmente do tamanho dos livros
para chegar à expansão do nosso universo literário.
Tudo com muito bom-humor: ''Certo dia nefasto, meu amigo, o editor
Martins, em São Paulo, passou a publicar Jorge Amado em formato
grande, 14x21. Foi uma desgraça. Tive que modificar as distâncias
entre as prateleiras. Depois, nosso querido José Olympio
resolveu aumentar a estatura de Graciliano Ramos, que já
nos parecera inexcedivelmente grande. Quase foi preciso chamar os
especialistas da Dasp para reorganizar e restaurar a biblioteca.
(...) Eis aí a tendência procurada: o romance brasileiro
está crescendo. Os velhos romances brasileiros no fundo não
eram romances mas sim novelas, às vezes apenas contos de
tamanho considerável. Hoje se escrevem romances verdadeiros
no Brasil''.
Afinal, era a época de Guimarães
Rosa, Graciliano Ramos, Raquel de Queiroz, José Lins do Rego.
Em seus ensaios ao menos nos presentes neste livro ,
Carpeaux mostrou extremo cuidado ao criticar diretamente os escritores.
Na maioria das vezes, o fazia por intermédio de uma outra
crítica já publicada. Uma estratégia que requer
esperteza e muito domínio do assunto: ataca-se o crítico
mais do que o autor. É exatamente o que faz em ''Várias
histórias'', de 27 de dezembro de 1958, quando exaltou Machado
de Assis, ''um escritor tão vivo que mal convém comemorar-lhe
a morte''. Um parágrafo é dedicado aos ''críticos
da oposição'': ''Não me refiro ao sr. Otávio
Brandão, que, pretendendo denunciar o niilismo de Machado
de Assis, apenas conseguiu demonstrar seu próprio niilismo
literário. Mas refiro-me à sra. Dinah Silveira de
Queiroz, que declara gostar só de poucas obras de Machado,
preferindo as de Victor Hugo. A relativa aversão da festejada
escritora contra Machado não surpreendeu ninguém;
tudo é, aliás, relativo. Mas a preferência por
Hugo é tão alarmante que inspirou artigos polêmicos
ao sr. A. Fonseca Pimentel. Não fez bem''.
Está aí outra marca das críticas
de Carpeaux: um discurso conduzido pela contradição.
Característica nítida, por exemplo, em ''Justificação
do romance'', de 16 de setembro de 1967, quando analisa o clássico
de James Joyce: ''O romance Ulysses, como obra de arte, não
precisa justificar sua existência; nenhuma verdadeira obra
de arte precisa disso. Mas a obra de arte Ulysses também
é um romance. E o gênero romance precisa, parece, de
justificativa de sua existência''. Ou como bem pontua Ivan
Junqueira no prefácio: ''Carpeaux gostava muito desse tipo
de ambigüidade, e quase sempre afirmava suas teses por meio
de negações''. Não por menos, na biografia
escrita por Mauro Ventura, o professor afirma que o crítico
adotou o barroco também como estilo de vida.
Ao longo dos 205 ensaios, descobrimos que Antonio
Candido foi (e ainda é) o melhor crítico, Scott Fitzgerald
era falsamente sofisticado, Jane Austen tinha uma literatura que
em nada lhe agradava. Mais: Conrad promoveu uma revolução
no romance, Caetés, de Graciliano Ramos, representaria a
tese do romance brasileiro, e Kafka, a expressão de um mundo
de agonia permanente. E o mais fiel romance sobre Canudos seria
o pouco comentado João Abade, de João Felício
dos Santos. Nesta compilação, as críticas mais
incisivas foram direcionadas ao poeta e crítico Ezra Pound,
com sua ''sistematização de paranóia'': ''Seu
tradicionalismo cultural está a serviço de um boêmio
indisciplinado, vanguardista nato e irremediável. As disciplinas
verbais e métricas de Pound servem a sua anarquia mental
de um homem profundamente decadente. É um fragmentarista,
um colecionador de migalhas, um diletante de habilidade vertiginosa'',
disparou em ''O difícil caso de Pound'', em 19 de setembro
de 1948. Provocações à parte, é o momento
de citar o próprio Pound para reavivar ainda mais a obra
de Carpeaux: ''Basta de comentar a coisa, olhemos para ela, é
o melhor a se fazer''.
Caderno "Idéias"
JORNAL DO BRASIL
07/01/2006
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Sinopse
/ coluna de Daniel Piza
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