O BRASIL QUE NÃO EXISTE
Ensaístas promovem mapeamento cultural do
país
Cláudia Nina
A primeira missa no Brasil,
de Paula RegoNo poema ''Hino nacional'',
reunido em Brejo das almas, de 1934, Carlos Drummond de Andrade
pergunta, nos versos finais: ''Nenhum Brasil existe. E acaso existirão
os brasileiros?'' A sábia indagação do poeta serviu de inspiração
para a produção do volume Nenhum Brasil existe — Pequena Enciclopédia,
uma seleção de 88 ensaios assinados por intelectuais, acadêmicos
e pensadores do Brasil e de algumas universidades estrangeiras,
que discorrem sobre os temas mais variados relativos à cultura nacional
— da revisão histórica dos primeiros anos do descobrimento, passando
por análises das obras de grandes nomes da literatura brasileira,
incluindo a crítica literária, as intermediações culturais e os
discursos audiovisuais, da arquitetura às artes plásticas.
Organizado pelo professor de literatura comparada
da Uerj, João Cezar de Castro Rocha, com a colaboração do historiador
Valdei Lopes de Araújo, o livro é uma versão ampliada (acrescida
de 23 artigos inéditos e mais 400 páginas) de Brazil 2001: A revisionary
history of Brazilian literature and culture (University of Massachusetts,
Dartmouth), publicado por ocasião das comemorações dos 500 anos
do descobrimento do Brasil e lançado na Biblioteca do Congresso
dos Estados Unidos, em Washington.
A enciclopédia é uma espécie de história cultural
do país contada por várias vozes, sem a pretensão de oferecer o
retrato pronto e acabado da identidade nacional. Mesmo porque, voltando
aos versos que inspiraram a criação da obra e o título em português,
um Brasil sem pluralidade ou paradoxos não existe. Como explica
o professor João Cezar:
— As interpretações do Brasil são tão importantes
quanto as próprias relações concretas que ocorrem neste território
físico e imaginário denominado Brasil. Portanto, trata-se de relacionar
as inúmeras interpretações; precisamos seguir imaginando este país
ou ele deixará mesmo de existir — analisa o professor João Cezar,
que atualmente está ministrando um curso de pós-graduação na Universidade
de Wisconsin-Madison, graças ao prestigiado Tinker Visiting Professorship.
O que já era um projeto ambicioso na versão original
ganhou na edição brasileira um perfil ainda mais audacioso. Publicado
pela Topbooks em parceria com a UniverCidade e a Uerj, o livro ganhou
19 artigos escritos especialmente para a nova edição, que ainda
inclui manuscritos inéditos e ilustrações coloridas, além de um
minucioso índice onomástico e um cuidadoso índice analítico, que
reforçam a idéia de esta se tornar uma senhora obra de referência.
Mas não pense o leitor que o volume, com mais
de mil páginas, é uma enciclopédia erudita e tediosa, que se coloca
na estante como enfeite. Nenhum Brasil existe retrata a pluralidade
de um país complexo e paradoxal em textos instigantes, preciosos
e extremamente bem escritos. Espelham parte da produção intelectual
de nomes importantes das letras no Brasil e do exterior sem os jargões
do academicismo. Não se trata de professores falando para professores,
mas de um diálogo aberto indispensável para estudantes universitários
e até mesmo alunos do ensino médio que estejam se preparando para
entrar na universidade.
A primeira parte traz reflexões sobre A carta,
de Pero Vaz de Caminha, em textos como os de Hans Ulrich Gumbrecht
(Universidade de Stanford) e Guillermo Giucci (Uerj), e ainda sobre
a primeira missa no Brasil, nos textos de Memory Holloway (Universidade
de Massachusetts, Darmounth) e de Maria Manuel Lisboa (Universidade
de Cambrigde). Há também uma seção inteiramente dedicada a Gilberto
Freyre, com ensaios como os de Mary Del Priore (Universidade de
São Paulo) e Ricardo Benzaquen de Araújo (Iuperj), por exemplo.
Na seção dos intermediários culturais, há textos
como os de Roberto da Matta (Universidade de Notre Dame) e de Eucanaã
Ferraz (UFRJ); nas partes de cultura, história e crítica lite-rária,
literatura e audiovisual, espalham-se nomes como os de Walnice Nogueira
Galvão (USP), Silviano Santiago (UFF), Heloísa Buarque de Holanda
(UFRJ), Regina Zilberman (PUC-RS), Arthur Netrovski (PUC-SP), Eugênio
Bucci, Maria Rita Kehl (PUC-SP), entre inúmeros outros.
Na parte literária, vários textos saborosos se
destacam: o da pesquisadora Beatriz Resende, que faz uma reflexão
sobre a marginalidade heróica dos personagens de Lima Barreto, como
Policarpo Quarema; de Ivo Barbieri (Uerj), que escreve sobre Iracema
e a tupinização do português; da escritora Bluma Waddington Vilar,
numa interessante abordagem sobre Machado de Assis e algumas das
obras mais importantes do autor, como Memórias póstumas de Brás
Cubas; e de José Luís Jobim (Uerj), que analisa a identidade nacional
pelo viés do nacionalismo em Gonçalves Dias. Há também o belo ensaio
''A hora da estrela, ou a hora do lixo de Clarice Lispector'', de
Italo Moriconi (Uerj). Entre os textos inéditos, destaque para ''Mário
de Andrade entre a erudição e o conhecimento'', de Marcos Antonio
de Moraes (Universidade de São Paulo/Centro Universitário Fundação
Santo André).
O organizador João Cezar de Castro Rocha explica
o critério para a cuidadosa seleção dos colaboradores:
— Neste livro, coloco em prática a crítica da
cordialidade, isto é, usar a amizade como critério de vida intelectual,
pois há professores e pesquisadores de todas as correntes possíveis.
Não há predomínio de uma escola, tampouco de uma ''capelinha literária''.
O único critério usado para a escolha de colaboradores e artigos
foi a qualidade do trabalho — afirma João.
Na opinião do professor Raul Antelo (Universidade
Federal de Santa Catarina), autor de um expressivo texto sobre Antonio
Candido (''Crítica híbrida e forma histórica''), o volume tem como
um de seus maiores trunfos a tarefa de apontar, em perspectivas
múltiplas e interdisciplinares — nem todas coincidentes entre si
—, a exaustão do modelo identitário.
— Não é que o Brasil não exista. Não existe qualquer
identidade como matéria. Toda identidade é um desenho imaginário
que produz efeitos simbólicos — diz Antelo, que faz em seu artigo
um ótimo apanhado acerca da produção crítica de Antonio Candido,
lembrando a tradição ensaística do cientista social e seu papel
de ''observador literário'' nos ensaios escritos para O Estado
de S.Paulo.
Segundo a professora Eneida Maria de Souza (UFMG),
que escreve sobre o tema ''Arquivo e memória em Pedro Nava'', o
que se pretende com o volume é, sem dúvida, apontar a impossibilidade
de uma história literária que atinja qualquer ideal de totalidade.
— Essa impossibilidade já corrobora a presença
de um perfil multifacetado e fragmentário de nossa tão desejada
identidade — diz a professora. Ela ressalta que a obra de Pedro
Nava, em particular, caracterizada como traço de um memorialismo
tardio, constitui uma espécie de ''retrato do Brasil''.
— O retrato de um país liberal, inventado por
ele, um país que se resumiria, segundo Otto Lara Resende, numa imagem
''cordial e democrática''. Ao mesmo tempo, investe-se contra uma
sociedade patriarcal e conservadora, por ter nascido com o século
e ter conhecido o lado revolucionário e rebelde do movimento modernista,
o que irá fazer de seu grupo um dos responsáveis pela construção
de um Brasil moderno — analisa.
Para o professor Hans Gumbrecht, a contribuição
de Nenhum Brasil existe poderá ser observada com mais amplitude
no futuro.
— Livros assim são mensagens que nós enviamos
a nós mesmos para a posteridade, sem saber ao certo se encontraremos
leitores ou não. Quem sabe nos próximos 500 anos — arrisca.
Idéias
JORNAL DO BRASIL
Rio de Janeiro
25/10/2003
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