ANOTAÇÕES DE UM DIPLOMATA
Argemiro Ferreira
Na virada do século e do milênio,
a aposentadoria de uma velha máquina de escrever, substituída
pelo computador, coincidiu com "a liberdade do tempo e do espaço".
Para o diplomata, político e escritor Afonso Arinos filho
- o pretexto, no final de 1998, para iniciar registros (vagamente
no formato escolhido pelo conselheiro Aires, do "Memorial"
machadiano) com a experiência e o testemunho de uma vida.
Ele os apresenta no livro "Mirante"
(Topbooks, 2006) como "notas soltas, ocasionais
e destituídas de qualquer compromisso, lembranças,
impressões e sentimentos que me ocorram". É bem
mais do que isso, como já observei antes. Até pelo
papel da família Melo Franco na vida do País e pela
posição privilegiada na qual ele próprio testemunhou
meio século de nossa história.
Não só a família e a elite
política estão nas 377 páginas de "Mirante".
Raras vezes um autor foi tão pródigo em retratos informais
e atraentes de expoentes da literatura, da diplomacia e da vida
intelectual. Mas Arinos filho deixa clara a influência do
pai, Afonso Arinos de Melo Franco, e do tio Virgílio Alvim
de Melo Franco - o grande articulador da revolução
de 1930.
A suspeita de assassinato
Menino ainda, no Estado Novo, o autor visitou
Virgílio na prisão (motivada pelo "Manifesto
dos Mineiros", redigido por ele), ouvindo-lhe o desabafo quando
um soldado falou da intenção do chefe de polícia,
então em visita ao local, de recebê-lo e conversar:
"Diga-lhe que se eu for vê-lo será para enfiar-lhe
a mão na cara e mandá-lo à puta que o pariu".
Duas ou três vezes o livro volta a Virgílio
e à suspeita de que a morte dele em 1948, na suposta troca
de tiros com um assaltante de sua casa no Jardim Botânico,
fora na verdade uma trama da guarda pessoal de Vargas - como o atentado
de seis anos depois, contra Carlos Lacerda, na Rua Tonelero. É
o que pensavam Carolina Nabuco, biógrafa de Virgílio,
e o irmão dele, Afonso Arinos, pai do autor.
Aquele episódio desviou Arinos pai da
literatura e da universidade, que amava, para a atividade política.
Líder da UDN em momento crítico, faria em agosto de
1954 seu mais contundente discurso contra Vargas. O filho preserva
a gravação, que o pai, depois do trauma do dia 24,
nunca quis ouvir (até mandara eliminar nos Anais do Congresso
duas expressões mais duras, que atribuiu ao calor do improviso).
Maus e bons momentos
A "diplomacia sem alinhamentos automáticos"
é tema recorrente no livro. Arinos filho não fica
na formulação do pai. Recorda o passado - a adesão
do Itamaraty ao modismo macarthista, com as listas negras que incluíram
Antônio Houaiss, João Cabral de Melo Neto, Vinícius
de Morais e outros. E a presença de dedos-duros depois, durante
a ditadura, a serviço da CIA na embaixada do Brasil em Montevidéu.
João Cabral e Houaiss foram amigos dele
a vida inteira (chegara a conseguir que Lacerda parasse a campanha
contra João Cabral). Vinícius trabalhou na mesa ao
lado, no início da carreira dos dois no Rio. Dali eles saíam
para as conversas de botequim em Copacabana, com outros - Sérgio
Porto, Lúcio Rangel, Antonio Maria. Também há
boas lembranças da carreira em "Mirante", até
pelo envolvimento de parentes e amigos ilustres, colegas escritores
e intelectuais.
O "name dropping" amplia-se com toda
uma geração intelectualmente dotada. Em diferentes
épocas o autor conviveu com Murilo Mendes, Guimarães
Rosa, Sérgio Buarque, Pedro Nava, Ribeiro Couto, Carlos Drummond,
Manuel Bandeira, Carlos Castelo Branco, Oto Lara Resende, Odilo
Costa, filho, Raimundo Faoro, Oto Lara Resende, Fernando Sabino,
Hélio Pellegrino, Barbosa Lima Sobrinho, Prudente de Morais,
neto, entre outros.
Às vésperas do confronto
Há momentos coloquiais, instantâneos
emocionais - como a imagem de San Tiago Dantas, parceiro de Arinos
pai na afirmação da diplomacia independente, a beijar
na França o solo produtor do Chateuneuf-du-pape; ou no quarto
do hospital, já em 1964, quando seu "poderoso engenho
mental" deixa de funcionar - à frente de uma praia do
Mediterrâneo pintada por Raoul Dufy, quadro que mandara trazer
de casa.
Arinos filho também foi arrastado à
política - primeiro no gabinete do presidente Café
Filho, depois na Assembléia estadual e Câmara federal.
Pai e filho ficaram pouco à vontade naquele rescaldo da crise
de 1954, com Lacerda a pregar o golpe (e "regime de exceção")
contra a posse de JK. Mas em 1960 os três se elegeram juntos
- Lacerda governador, Arinos pai senador, e o filho deputado (à
Constituinte da Guanabara).
O rompimento viria logo. Ministro de Jânio
Quadros, Arinos pai conduzia a política externa independente,
novo alvo de Lacerda; vice-líder da bancada do governador,
o filho trocou a UDN pelo Partido Democrata-Cristão. As divergências
tinham começado ainda em 1954, com um telegrama no qual Lacerda
conclamara Arinos pai, então no exterior, a demitir-se da
liderança. (Ficam para amanhã mais detalhes do confronto
- e a reconciliação Arinos-Lacerda.)
Arinos e Lacerda, da aliança ao
confronto
Como foi lembrado na coluna anterior, a propósito
do livro de Afonso Arinos filho ("Mirante", Topbooks,
2006), as divergências entre os Arinos (pai e filho) e Carlos
Lacerda tinham começado cedo. Já em novembro de 1953
o jornalista e sua TRIBUNA atacaram Arinos pai, pela sua amizade
(de mais de duas décadas) com Osvaldo Aranha, ministro da
Fazenda de Getúlio Vargas.
A campanha destemperada de Lacerda contra Vargas
já estava a mil. Arinos pai evitou o choque, mas o filho,
com 23 anos, manifestou sua indignação numa carta
violenta. Descobrira tarde, dizia, "o verdadeiro Lacerda, escondido
atrás da máscara de um falso Dom Quixote. (...) Apenas
lamento que a sua atitude indigna me haja compelido a utilizar,
nesta carta, uma linguagem e um estilo que são exclusividade
sua". Lacerda devolveu: "Não quero guardar esta
carta. (...) Quando você crescer, compreenderá quanto
é injusto e tolo".
Em fevereiro Arinos pai representava o Congresso
em Caracas, na Conferência Interamericana, e recebeu telegrama
de Lacerda, que via sua viagem como rendição ao governo
e o conclamava a renunciar à liderança da UDN - para
que a ausência não se tornasse "verdadeira traição".
A aventura do "Tamandaré"
A resposta veio de Caracas: "Nunca prestei
melhores serviços como líder da oposição
(...). Cumprirei o dever até o final". Escreveria depois
nas memórias: "Defendia os interesses brasileiros, como
deputado da oposição (...). E quem me acusava de abandono?
O homem que, em várias oportunidades, deixou seus deveres
para fugir do País, escapando às conseqüências
das crises que desencadeia".
O atentado da Rua Tonelero, a 4 de agosto, os
reaproximou. O jornalista, já em casa, abraçou Afonso
Arinos. "Sua visita hoje foi a que maior alegria me deu",
disse. Mas o líder udenista não abraçaria o
golpismo de Lacerda - contrário à posse de JK e favorável
a "regime de exceção". Negou-se a ir para
o "Tamandaré" com ele e, ao fim da aventura, rejeitou
convite para assumir a direção da TRIBUNA.
"Não queria solidarizar-me com uma
linha de agitação a que sempre fora alheio, e que
nos levara à situação em que nos encontrávamos",
escreveu nas memórias. Limitou-se a recomendar que Lacerda
buscasse asilo (na embaixada de Cuba, onde Arinos já tratara
do assunto). Na volta do exílio, em 1956, Arinos fez mais:
venceu, na Câmara, a batalha para salvar da cassação
o mandato de Lacerda.
Incompatível com a democracia
Na eleição de 1960, Lacerda e os
dois Arinos fizeram a campanha juntos, no chamado "caminhão
do povo". Elegeram-se (governador, senador e deputado) e a
UDN chegou ao poder - na Guanabara e em Brasília (com Jânio
Quadros). Nem por isso deixou de vir novo confronto, motivado pelo
ataque de Lacerda à política externa independente,
liderada por Arinos como ministro do Exterior de Jânio.
No desdobramento, a renúncia de Jânio
levou Arinos a articular com San Tiago Dantas a emenda parlamentarista
para a posse de Jango. Lacerda, transtornado, disparou telegrama
prometendo não viajar "antes de ver pela última
vez a cara da vaidade mórbida que leva um tipo à traição
e à ignomínia". Arinos respondeu: "Viagens
seriam inúteis. Embora sempre fujão, você nunca
poderá fugir de si mesmo. É o seu castigo".
Arinos filho conta sua própria transformação
em relação a Lacerda - da admiração
inicial, quando o via como "uma espécie de herói
destemido", a uma "aversão explícita".
"Pois ele não argumentava, atacava. Não discutia,
agredia. Buscava desqualificar qualquer pleito eleitoral cujo resultado
lhe fosse desfavorável. Era, em suma, incompatível,
por temperamento, com a convivência democrática".
Reencontro, 14 anos depois
A reconciliação - 14 anos depois,
nos 70 anos de Arinos - foi iniciativa de Lacerda, numa carta: "Nossas
divergências políticas eram bem maiores que nossas
convergências faziam supor. Ao primeiro afastamento, explodiram.
Mas, graças a Deus, o tempo e o que temos de melhor em nós
prevaleceram afinal. (...) E, se alguma coisa agradeço, é
ter vivido também já o bastante para não perder
a oportunidade que me dá esta vida de lhe trazer este abraço".
Arinos não se surpreendeu: "Ao contrário,
de alguma forma esperava sua manifestação. (...) Nós
vivemos; penso que sobrevivemos (...). O futuro não nos pertence
mais; nem mesmo o futuro do nosso passado. O que resta para você
e para mim é aquele outro passado (...), da mocidade - você
muito mais jovem do que eu - quando vivíamos, ao lado de
Virgilinho, rodando pelas estradas de Minas, pensando menos em nós
do que naquilo com que sonhávamos".
Lacerda morreria um ano e meio depois. O golpe
de 1964, que apoiara, tinha destruído seu sonho de chegar
à presidência, cassando-lhe os direitos políticos
(em seguida à Frente Ampla). Mas operou o milagre de levá-lo
a defender a política externa independente (que tinha atacado)
para não ver "o Brasil condenado a se transformar no
qüinquagésimo-primeiro estado da União americana".
TRIBUNA DA IMPRENSA
03/03/ 2007
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