BANDA PODRE
Confissões de um ex-PM do Rio
Editora TOPBOOKS
Quem poderia imaginar que quatro PMs de
uma Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) – cuja proposta
é justamente a de levar segurança a áreas pobres
– fossem capazes de torturar até a morte um inocente,
com a cumplicidade dos superiores e a omissão de mais 21
policiais? Para qualquer pessoa que tenha conhecido a banda podre
da PM, como aconteceu com Rodrigo Nogueira, carioca de 32 anos,
o Caso Amarildo infelizmente não é exceção.
Entre 2005 e 2009, o soldado Rodrigo usou a farda, o distintivo
e as armas cedidas pela corporação para extorquir
dinheiro de quem estivesse fora da lei ao cruzar seu caminho, torturar
traficantes, negociar e vender a liberdade de perigosos assaltantes,
julgar e condenar à morte criminosos e suspeitos de crimes,
participar de ações da milícia e matar a sangue-frio,
sem piedade. Pela primeira vez um ex-PM do Rio confessa publicamente
ter cometido tamanhas atrocidades e revela como funciona o esquema
que corrompe praticamente toda a cadeia hierárquica da corporação,
do soldado ao coronel.
Para expiar sua culpa, Rodrigo criou um personagem,
o soldado Rafael, o protagonista que narra em primeira pessoa "Como
nascem os monstros – A história de um ex-soldado da
Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro" (Editora
Topbooks), lançado mês passado. Qualquer semelhança
com a realidade não é nenhuma coincidência.
Depois que foi preso em novembro de 2009 na Unidade Prisional da
PM – condenado por tentativa de homicídio e de extorsão
– Rodrigo considerou uma missão revelar o sistema de
uma das maiores corporações policiais do país,
que está na berlinda por episódios como o de Amarildo
ou por ter perdido o controle de manifestações que
acontecem desde junho.
– Alguém precisava dar real entendimento
ao que acontece dentro dos quartéis da PMERJ, quais são
os fatores que transformam homens comuns, pais de família,
em assassinos alucinados e sem remorso, e isso só seria possível
através do prisma de quem viveu no inferno e que já
não tinha mais nada a perder. Não escrevo para ser
reconhecido ou festejado, mas sim para que o nível de podridão
da PMERJ seja escancarado de vez e de uma maneira que não
tenha mais volta, para que todos os leitores abram os olhos e percebam
que não passamos todos de uma reles massa de manobra de interesses
muito mais terríveis e obscuros, que todos dias vendem morte
e insegurança, para poder pedir seu voto de novo daqui a
quatro anos – afirma Rodrigo, em entrevista por carta, na
qual não deixou de responder nenhuma das 42 perguntas.
Apesar de ter confessado vários crimes,
o ex-PM Rodrigo Nogueira nega ter praticado justamente os crimes
que o levaram a uma condenação total de 30 anos e
oito meses de prisão, na esfera civil e militar. Ele foi
condenado a partir do depoimento de uma vendedora ambulante, que
acusou ele e um colega de terem tentado extorquir dinheiro dela
e lhe dado um tiro no rosto, além de estuprá-la. O
caso ganhou as páginas policiais em 2009. Por ironia, a mulher
era a informante que havia ajudado o grupo de Rodrigo no plano de
sequestro de um traficante, cuja liberdade custou R$ 250 mil, além
de cinco fuzis.
– Não sei dizer especificamente
quem foi o responsável pelo disparo que a atingiu, mas ela
foi submetida a exame de corpo de delito que comprovou que ela não
foi sofreu agressão sexual, como havia denunciado –
defende-se o ex-PM, acrescentando que foi condenado por 4 votos
a 3 e não quis fazer do livro "um plenário"
para sua defesa.
Nascido e criado numa área pobre de Nova
Iguaçu, Rodrigo cursou a Escola de Aprendizes Marinheiros
de Santa Catarina, acreditando que ia participar de alguma guerra.
Seu sonho era pegar em armas para defender a sociedade, e foi isso
que acabou levando-o à Polícia Militar. O protagonista
do livro inicia sua trajetória na PM como uma espécie
de paladino da Justiça, realmente acreditando que iria "servir
e proteger", como diz o slogan da corporação,
copiado da polícias americanas.
Aos poucos, a convivência com colegas mais
experientes, entregues à rotina de violência, o transforma
no que ele acreditava ser um combatente urbano, estimulado pela
retórica da guerra, na qual policiais viram soldados, e traficantes
– e até moradores de favelas – seus inimigos
mortais. Recebe então a senha para saquear os territórios
conquistados, como despojos de guerra, e eliminar pessoas a seu
próprio julgamento, contribuindo para o círculo vicioso
de violência que impregna as ações da polícia
nas grandes cidades do país.
– Rafael sente muito remorso pelos homicídios
que cometeu, e isso fica bem claro na obra. É isso que mais
me incomoda, tanto que a metamorfose só ocorre depois que
ele mata a primeira vez – observa o ex-PM escritor.
Apesar de ter conhecido a corporação
em 2005, Rodrigo conclui que foi a ditadura de 64 quem usou a PM,
no combate à subversão, pois foi quando, segundo ele,
a força aprendeu a torturar, sequestrar, "embuchar"
(forjar provas) e até matar com extrema eficiência
e funcionalidade. Com a volta da democracia, diz ele, esses poderes
deveriam ter sido extintos. "Mas nenhum general foi aos batalhões,
nenhum curso de reciclagem foi formulado, nada. Enquanto as tropas
do Exército recolhiam-se aos quartéis, quem é
que continuou nas ruas? A PM. Tudo foi jogado em cima de homens
semianalfabetos, mal-pagos e mal-preparados", afirma no livro,
num dos raros momentos em que tenta justificar os erros praticados
pelos policiais.
Segundo Rodrigo, o ódio ao bandido vai
sendo construído já no Curso de Formação
e Aperfeiçoamento de Praças (CFAP), em Marechal Hermes.
"A animosidade do policial com relação ao bandido
carioca é proveniente do mais puro revanchismo, e vice-versa.
Esse ciclo de violência e morte se renova dia a dia, com a
repetição de atos de barbárie de ambos os lados,
mas sua origem é culpa do aparato estatal", afirma o
soldado Rafael, no livro.
Mas o soldado Rafael perde de vez a ingenuidade
e começa a metamorfose de ser humano para monstro depois
de cometer o primeiro assassinato a sangue-frio. A vítima
é um rapaz que fora atropelado e estava caído no chão,
se arrastando e implorando por socorro. Minutos depois, os policiais
constatam que era verdadeira a versão de um popular que avisara
que se tratava de um assaltante. O homem caído no chão
fora atropelado por outro carro no exato momento em que tentava
assaltar um motorista na Radial Oeste, na Zona Norte do Rio. Indefeso
e todo arrebentado, ele balbuciava algo, como se pedisse ajuda.
Mas o soldado Rafael decidiu matá-lo e depois simular um
tiroteio, como acontece em muitos casos forjados de autos de resistência
– o confronto armado com policiais. Em vez da pistola calibre
45 do assaltante, Rafael apresentou na delegacia uma pistola velha.
Apesar da sensação de ter virado um monstro, com a
execução sumária de um moribundo, ele vendeu
a arma e dividiu o dinheiro com o colega de farda.
No livro, Rodrigo relata como vendeu também
um fuzil AK-47 apreendido após confronto com traficantes
do Morro do Borel, na Tijuca. Nesse tiroteio, dois bandidos foram
fuzilados, depois de reagirem à patrulha de Rodrigo. O comprador
foi um chefe de milícia. O matador do grupo, também
conhecido como "quebrador", era um ex-PM, colega de turma
de Rodrigo. Apesar de afirmar ter recusado convite para integrar
aquela quadrilha, Rodrigo conta também como participou de
ação da milícia contra um grupo de traficantes,
cujo chefe foi degolado por um homem especialmente encarregado da
ação, numa invasão minuciosamente planejada
pelos milicianos. A ideia era mandar um recado aos traficantes:
desistam desse território. Essa operação clandestina
numa favela do Rio foi fruto de delação da namorada
do bandido, cansada de humilhações e agressões.
A mulata sestrosa tinha tudo do bom e do melhor na favela, mas o
traficante não manifestava qualquer respeito por ela. Acabou
sendo remunerado com a traição.
Rodrigo Nogueira
Além do cheiro de pólvora produzido
pelos relatos sem firulas, o livro “Como nascem os monstros”
poderia funcionar como uma espécie de manual da corrupção
na Polícia Militar do Rio. Em nove meses, Rodrigo escreveu
o livro de 606 páginas, que chamou de romance não
ficcional. Ele garante que, tirando um ou outro personagem ou características
criadas para esconder os personagens com os quais conviveu no dia
a dia da PM, é tudo verdade. O livro destrincha o esquema
de corrupção que depende também de alguém
disposto a corromper o policial, seja um motorista pego sem habilitação,
um usuário de drogas detido logo após sair da boca
de fumo ou um chefão do tráfico vítima de um
sequestro planejado por uma rara sociedade entre policiais civis
e militares. A pessoa é pega em flagrante e parte para o
"desenrolo", que na gíria do submundo significa
a forma de se livrar de uma situação incômoda.
“O PM só vale o mal que pode
causar” – escreve o soldado Rafael, que começou
a carreira extorquindo o produto do roubo praticado por pivetes
e gangues de bicicleta e chegou a participar do sequestro de um
dos chefões do tráfico, que chamou de Rufinol e tem
tudo para ser Rogério Rios Mosqueira, o Roupinol. Procedente
de Macaé, era um dos maiores fornecedores de drogas do Rio
e dominou o Complexo de São Carlos, no Estácio. Foi
um dos primeiros no Rio a montar pequenos laboratórios de
refino de cocaína, o que mostra que tinha contatos que trazem
a pasta-base da droga diretamente da Bolívia e da Colômbia.
Aliado de Nem da Rocinha, Roupinol foi morto em cerco da Polícia
Federal, em março de 2010.
O sequestro de Roupinol foi planejado a partir
de informações dadas por um X-9 (informante), com
quem os policiais dividiam o dinheiro arrecadado em operações
clandestinas de combate ao tráfico, e mais tarde se tornou
justamente a denunciante dos crimes que levaram o soldado Rodrigo
à prisão.
– Dentre todos os crimes que podem ser
praticados quando se está com a farda da PM, o sequestro
é, sem dúvida, um dos mais maravilhosos – conta
Rafael, o alter-ego do ex-PM Rodrigo Nogueira.
O livro explica que o bandido sequestrado pode
ficar horas dentro de um carro da polícia, ou até
mesmo num Destacamento de Policiamento Ostensivo (DPO), o avô
da UPP. No caso de os policiais bandidos serem surpreendidos pela
corregedoria, eles podem alegar que não havia sequestro algum
e que, na verdade, a pessoa detida estava prestes a ser conduzida
para a delegacia de polícia. Só que a quadrilha que
sequestrou o traficante não conseguiu comprar todo mundo,
a história acabou vazando e os envolvidos foram sendo de
alguma forma punidos, um a um.
Quando não conseguiam sequestrar um chefão,
policiais corruptos cobravam propinas do tráfico, pagas semanalmente,
diretamente aos agentes fardados e em carros da polícia,
em plena luz do dia.
– Depois de comprar um policial, o bandido
se sente um pouco dono dele – diz o soldado Rafael, demonstrando
rara consciência das consequências da corrupção
para a atividade policial.
Segundo Rodrigo, alguns policiais ficam tão
submissos ao dinheiro do tráfico que no batalhão de
Bangu, nos anos 1990, era comum um famoso traficante desfilar pelas
ruas da Vila Vintém fardado e a bordo de uma das recém-chegadas
blazer da PM. No São Carlos, os policiais tinham que subir
a ladeira com calça arregaçada até a altura
dos joelhos, com o fuzil cruzado nas costas, para mostrar que estavam
arregados. Até um blindado, o famoso caveirão, pode
ser usado como arma de coação na hora de determinar
arregos a serem pagos, diz Rafael.
Numa das histórias, ele conta como o Grupo
de Apoio Tático (GAT) do qual fazia parte invadiu uma favela,
dominou o local onde era feita a embalagem da droga e torturou barbaramente,
com crueldade ímpar, dois traficantes desarmados. Eles foram
executados sumariamente depois que se percebeu que não tinham
informações que levassem aos chefes da quadrilha.
As torturas e execuções são
descritas em detalhes, assim como as medidas tomadas para se minimizar
os riscos de uma perícia, por exemplo, constatar que as mortes
não foram em confronto. Na entrevista, o ex-PM Rodrigo confessa
que raramente os policiais que liberam bandidos perigosos ou vendem
armas para traficantes avaliam o mal que estão causando à
sociedade:
– O policial que comete esse tipo de crime
não pensa nisso. Só o que importa é o lucro.
É mais um sintoma da deformidade moral adquirida, quando
tudo se torna banal, explicável, lícito – diz
Rodrigo, que nega ter vendido armas para traficantes ou colocado
em risco inocentes, com a libertação de bandidos.
No livro, entretanto, relata a história
de um assaltante que estava na porta de um banco, pronto para fazer
uma “saidinha de banco”, quando o PM Rafael o surpreendeu.
Em vez de levá-lo preso, negociou e vendeu sua liberdade.
Deixou, portanto, solto um tipo de criminoso frequentemente envolvido
em latrocínio, roubo seguido de morte.
Embora não detalhe todos os casos, Rodrigo
revela no livro como o esquema de corrupção parece
estar mesmo entranhado em cada setor de um batalhão da PM.
O cenário da roubalheira é a Tijuca, bairro de classe
média, na Zona Norte da cidade. Ele trabalhou no 6º
BPM (Tijuca) e mostra a estrutura que é montada para achacar
cidadãos, comerciantes, suspeitos e criminosos. Uma simples
verificação de documento pode dar início a
um processo que se torna vantajoso para um policial que decide complementar
a renda às custas de propina.
Segundo Rafael relata, tudo acontece com a cumplicidade
e até o estímulo de oficiais da unidade, que colocam
os subordinados em atividades estratégicas para a coleta
do dinheiro. Em muitos casos, o serviço tem uma taxa fixa
e periódica, cobrada pelo oficial, que não quer nem
saber como o subordinado vai pagar o que foi combinado. É
o trato que garante a pecúnia extra e mantém o subordinado
no lugar determinado para conseguir o faturamento.
– Cansei de dar dinheiro na mão
de major, capitão, tenente. Até para trabalhar em
lugar melhor tem que pagar, senão o PM fica baseado a noite
toda lá na Conchinchina. E os coronéis pegam dinheiro
de tudo quanto é lugar. Tudo no batalhão gira em torno
dele. É uma sujeirada sem tamanho, chega a dar nojo –
afirma Rodrigo.
A rádio-patrulha é um dos serviços
mais cobiçados pelos policiais porque é um dos poucos
em que "não é o polícia que corre atrás
do dinheiro, mas é o dinheiro que vem até o polícia".
São os "ratrulheiros", como diz Rafael. Ele atribui
a vantagem obtida pelos policiais corruptos "à sempiterna
tendência do carioca em querer se dar bem", a velha Lei
de Gérson.
– Se um PM exige dinheiro por conta de
uma infração de trânsito que não existe,
ou ele é burro ou maluco – diz Rodrigo, acrescentando
que jamais conheceu algum PM que cobrasse propina de alguém
que estivesse dentro da lei.
Com os estabelecimentos comerciais, uma rádio-patrulha
pode conseguir bons acordos para estar lá na hora do fechamento
– os “fechos”, que nada mais é do que o
fornecimento de segurança particular com o aparato estatal.
Já as rondas escolar e bancária são coordenadas
pelo comando do batalhão, de acordo com seus próprios
interesses. Mesmo no caso de atendimento a mortes naturais, os PMs,
a pretexto de orientar a família do morto, fazem acertos
para favorecer a funerária que vai lhe garantir a “cerveja”.
No serviço de motocicleta, Rafael e um
sargento veterano tomaram muita propina de motoristas infratores,
até que um dia tentaram extorquir dinheiro de um amigo do
chefe do serviço. Aí o negócio babou. Rafael
lembra que o sargento era bem-humorado. Quando o motorista infrator
lhe oferecia um “café” para fazer vista grossa
a alguma infração, o sargento dizia que só
tomava o Kopi Luwak, um australiano que custa mil dólares
o quilo. Indagado o que acha da situação com a Guarda
Municipal cuidando do trânsito, Rodrigo diz que "melhorou,
mas ainda não é ideal".
– Existem, sim, diversos casos de corrupção
envolvendo GM, porém está sendo como na época
do BPTran (Batalhão de Polícia de Trânsito).
No começo, está todo mundo satisfeito, mas uma hora
a merda vai feder. Pode esperar – afirma o ex-PM.
No Grupo de Ação Tática
(GAT), uma minitropa de elite do batalhão, conheceu policiais
que estão sempre dispostos a combater o crime visando principalmente
os próprios bolsos. O destemor deles tem uma função
objetiva: atuar em operações clandestinas, como a
que invadiu o Morro dos Macacos pela mata e fuzilou sem anúncio
um grupo de traficantes que estava de plantão na boca. O
líder do grupo era um sargento ferrabrás.
Certa vez, ele próprio foi se vingar de
um desafeto e, sem querer, eliminou também a criança
que acompanhava o homem, num carro. Ficou muito tempo assombrado
por esse pequeno fantasma. Mais tarde foi executado por assaltantes
na Avenida Dom Hélder Câmara, diante de toda a família,
na volta do jantar em que comemorara sua aposentadoria da PM. Os
criminosos desconfiaram de que ele era policial.
Ainda no 6º BPM, o soldado Rafael conta
como funcionava também o esquema do "morrinho",
um dos mais bem organizados planos de achaque a usuários
de drogas da cidade de que se tem notícia. O livro conta
que teve muito policial que construiu sua casa com o dinheiro extorquido
de dependentes químicos naquele golpe. Os policiais montavam
uma "campana" (vigilância), numa área vizinha
ao Morro dos Macaos, em Vila Isabel, de onde podiam observar, a
uma distância segura, toda a movimentação na
boca de fumo do Morro da Mangueira, uma espécie de "drive-thru"
do tráfico. Segundo Rodrigo, frequentavam o local celebridades,
pagodeiros, advogados, "playboys", médicos e até
mesmo policiais Ali escolhiam os usuários de drogas que deixavam
a favela em carros importados e acionavam outra dupla de policiais
que estava num ponto estratégico. Um dos casos que mais rendeu
aos achacadores, contado em 12 páginas do livro, foi o de
um empresário norueguês, com negócios no Rio,
acompanhado de uma loura, advogada, que pagou lição
de moral para os PMs até que se descobriu o que o estrangeiro
guardava na cueca: papelotes de cocaína. Num só "bote"
os PMs arrecadaram R$ 10 mil mais US$ 2.500. O dinheiro foi pago
no belo apartamento da advogada, em São Conrado, onde os
policiais assaltaram até a geladeira da vítima.
– Policial tem que ganhar bem. Não
para enriquecer, mas para poder pagar uma faculdade, ou a escola
dos filhos; as prestações de um carro e o financiamento
de uma casa. É claro que, não importa o valor do salário,
sempre haverá alguém propenso à corrupção
– nossos queridos políticos estão aí
e não me deixam mentir. Entretanto, acho difícil encontrar
um policial que se arriscaria a perder a farda e um salário
de R$ 4 mil por um amarrado de queijo apenas, ou por uma bacia com
peixes, como já vi acontecer. Com efeito, se a carreira oferecesse
um salário razoável, atrairia uma parcela mais selecionada
de interessados no concurso, o que elevaria o nível cultural
e social dos candidatos – afirma Rodrigo.
Mas o policial ganha mal (R$ 1.200 o salário
inicial) e muitas vezes acaba vendo nas situações
irregulares oportunidades de complementar a renda com o menor esforço
possível. Essa postura, por sua vez, aumenta a desconfiança
da população nos agentes da lei, o que foi verificado
semana passada em pesquisas do Fórum Brasileiro de Segurança
Pública. O ex-PM Rodrigo Nogueira concorda que os cidadãos
cada vez desconfiam mais dos policiais militares:
– O carioca, por vezes, tem mais medo de
encontrar uma viatura da PM, no breu da madrugada, do que um bonde
armado de traficantes indo de um baile a outro. A visão que
a população tem da PMERJ está tão desgastada
que é preciso um reset. Foram anos de abandono, negligência,
de chacinas como a do Borel, de Vigário Geral, da Candelária,
da Baixada. Em outros estados, a aceitação da população
é maior, muito embora o modelo de militarização
das polícias esteja sendo cada vez mais questionado. Contudo,
o Rio não encontra paralelo quando o assunto é violência
policial. Todos são culpados, mas sobretudo as nossas autoridades
políticas, que perdem tempo ocupadas nos seus cambalachos
e se esquecem (ou não estão nem aí!) de quanta
gente está morrendo nessa guerra miserável, que nunca
termina e não tem vencedores – só perdedores.
A recíproca também é verdadeira,
observa Rodrigo: "A população se torna o inimigo
ao homiziar o traficante, dar guarida ao "157" e bater
palmas ou dar de ombros quando um PM é estralhaçado
pelas balas dos bandidos. É um círculo vicioso: o
cidadão não confia no PM e o PM não confia
no cidadão".
O ex-PM critica também a militarização da força
e a disparidade entre os processos de expulsão de um praça
e de um oficial. No caso do praça, ele lembra, a decisão
é rápida, depois que o policial é submetido
a um conselho de disciplina. "É virtualmente impossível
que o oficial seja expulso", observa. Com mais liberdade para
agir, são os oficiais que incentivam os comandados a extorquirem
mais e a matar mais, conclui Rodrigo.
"Enquanto a Academia de Oficiais continuar
formando líderes desqualificados, pretensiosos e, acima de
tudo, aproveitadores da ignorância dos praças, o ciclo
de roubalheira continuará se renovando um dia após
o outro. Assassinos obedecendo a assassinos, ladrões prestando
continência a ladrões; e depois, com a mais deslavada
demagogia, o comandante-geral vem crucificar um ou outro policial
preso por cometer algum crime de repercussão na mídia!",
escreve Rafael.
No livro, o soldado Rafael não deixa pedra
sobre pedra da corporação. “Ingenuidade pensar
que no Bope não tem ladrão. Apenas o objetivo e a
forma de escambo variam, pois enquanto o barriga azul cata tudo
que estiver pela frente, o caveira corre atrás da mochila
(que leva o dinheiro das bocas) e dos bicos (fuzis)”, escreve.
Apesar de descrever detalhes e histórias
de policiais com quem trabalhou – que podem vir a ser reconhecidos
por ex-colegas – Rodrigo diz que não há receio
de que alguém seja descoberto:
– Procurar indícios de crime em
minha obra seria como procurar uma machadinha num quarto fedorento
de São Petersburgo ou um pilão de cobre esquecido
num bolso de algum capote velho – ironiza [numa clara referência
a dois romances de Dostoiévski: Crime e Castigo e Os Irmãos
Karamazov].
Com estilo dos melhores thrillers de suspense,
Rodrigo garante que não se autocensurou em nenhum momento,
mas mantém sob sigilo os nomes dos personagens da trama.
– É óbvio que para tratar
de assuntos tão delicados como os de meu livro há
que se usar o bom senso, até porque existem outras pessoas
envolvidas e não é conveniente arrolá-las em
dinâmicas e situações que gerem embaraço.
Não diria que me autocensurei, pois contei tudo. Entretanto,
sempre cuidando para preservar terceiros, e esforçando-me
para manter a integridade da história. Onde isso não
foi possível, o romancista entrou em ação e
deu jeito no problema – conta o ex-PM e escritor.
Como conhece bem o sistema ao qual esteve ligado
durante cinco anos, Rodrigo pode mesmo salvar a pele com a decisão
de proteger nomes e locais exatos das histórias contadas
no livro. Leitor voraz que diz não apreciar literatura policial,
ele conta que desistiu de ler "Tropa de Elite", o livro
que transformou os integrantes do Bope em heróis, e "Sangue
Azul", outro livro sobre a corrupção da PM do
Rio. "O texto muito pobre e a inverossimilhança me desanimaram",
critica.
Com uma citação de Nietzche –
“Quem conhece monstruosidades deve cuidar para que não
se torne um monstro. E se você olhar longamente para um abismo,
ele também olha para dentro de você” –,
o livro tem referências literárias difíceis
de se achar no texto de um ex-PM que conseguiu entrar para a faculdade
de direito com o dinheiro ilegal, já que seu salário
era de apenas R$ 750,00. Ele cita, entre outros, H.G. Wells, Mario
Puzzo e Jean-Paul Sartre. Aos 9 anos de idade, venceu um concurso
de redação, cujo prêmio foi uma coleção
luxuosa das principais obras de Monteiro Lobato. Mais tarde, na
Marinha, onde quase chegou a ser cabo, recebeu o prêmio de
melhor poesia num concurso, o que por muito tempo foi motivo de
piada no quartel.
– Seria impossível eu escrever sem
antes ter tido contato com a literatura de verdade, com os textos
que são a base do meu pensamento. Os livros são, sem
dúvida, instrumentos muito mais poderosos que qualquer fuzil
já produzido – filosofa.
O GLOBO
17/11/2013
Blog Repórter de Crime / Jorge Antonio
Barros
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"A
perversão começa na formação",
diz ex-PM condenado
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