DEZ ANOS SEM JOSÉ GUILHERME MERQUIOR
Mesa-redonda realizada no dia 4 de outubro de
2001
Participantes: Acadêmicos Eduardo Portella e
Sergio Paulo Rouanet, Antonio Gomes Pena, José Mario Pereira e Leandro
Konder
PRESIDENTE TARCÍSIO PADILHA - Tenho o prazer
de conceder a palavra ao editor José Mario Pereira.
JOSÉ MARIO PEREIRA - Começo por agradecer ao
presidente da Academia Brasileira de Letras, prof. Tarcísio Padilha,
o amável convite para participar deste encontro que homenageia o
ensaísta, crítico literário, diplomata, meu amigo José Guilherme
Merquior, na passagem dos 10 anos de sua morte.
Nesta mesa apenas eu não conheci Merquior desde
que ele se iniciou nas letras. Antonio Gomes Pena foi seu professor
e amigo da vida inteira (na "Apresentação" de O véu e a máscara
- Ensaios sobre cultura e ideologia, Merquior recorda que foi
iniciado em ciências humanas, "de modo não-dogmático e intelectualmente
instigante", por ele.) O prof. Eduardo Portella editou três livros
de Merquior, afora inumeráveis ensaios que fez publicar em sua revista
Tempo Brasileiro; Leandro Konder conheceu-o no MAM, ainda
nos anos 60, apresentou-o à obra de Lukács e assinou as orelhas
de A razão do poema, o primeiro livro de Merquior; e o coordenador
desta mesa, o ensaísta e embaixador Sérgio Paulo Rouanet, fez junto
com ele nos anos 70, em Paris, a primeira entrevista brasileira
com Foucault (em O homem e o discurso - A arqueologia de Michel
Foucault, Tempo Brasileiro, págs. 17-42, 1971) - tão substantiva
que a editora foi convidada a incorporá-la num dos quatro volumes
que a Gallimard há pouco publicou com os dispersos do filósofo de
As palavras e as coisas - além de ter, como colega no Itamaraty,
sofrido as mesmas investigações (por suspeita de esquerdismo) de
que Merquior foi objeto, como lembra Marcílio Marques Moreira no
depoimento que acaba de publicar (Diplomacia, política e finanças
- De JK a Collor, Objetiva, 2001). Ou seja, meus companheiros
nesta mesa são pesos pesados. O que me resta dizer, ao lado de tão
ilustres representantes da cultura brasileira, sobre José Guilherme
Merquior? Tentarei esboçar uma rápida síntese do percurso intelectual
do ex-ocupante da Cadeira 36 desta Casa, onde tomou posse a 11 de
março de 1983 sucedendo a Paulo Carneiro. Comprometo-me, pelo menos,
a ser breve.
* * *
Passados 10 anos da morte de José Guilherme Merquior
é sintomática a ausência de estudos monográficos, já não digo sobre
a totalidade mas sobre aspectos específicos de sua obra. Merquior
tem sido objeto - salvo raras exceções - de leituras apressadas,
em geral tendenciosas, e que procuram ligá-lo ao que se convencionou
chamar a "direita" brasileira. (Lembro, porém, que neste momento
pelo menos uma tese está sendo escrita no exterior - a de Milton
Tosto, sob a orientação de Quentin Skinner - sobre o liberalismo
de Merquior).
Boa parte da crítica literária brasileira de
hoje, em especial a paulista, impôs um insultuoso silêncio sobre
a obra de Merquior. Figuras para as quais, generosamente, Merquior
chamou atenção, ao reeditarem seus livros, o ignoram em entrevistas
e citações de quarta-capa. É o caso de Davi Arrigucci Júnior, na
segunda edição de Achados e perdidos (1999). Ao publicar
agora um volume sobre Borges no Brasil (2001), Jorge Schwarcz
não viu razão para incluir o excelente texto de Merquior sobre Borges
contido em As idéias e as formas. O mesmo pecado comete o
pesquisador e especialista que prefaciou a edição de Tempo espanhol,
de Murilo Mendes, para a Record: desconhece a bela página, pioneira,
de Merquior no Jornal do Brasil (19.06.60) sobre este livro
de Murilo. Mesmo um amigo como Marcílio Marques Moreira, que o acompanhou
até os dias finais, preferiu deixar para outra oportunidade o testemunho
que sobre Merquior dele se esperava neste livro-depoimento que acaba
de publicar.
Merquior foi um polemista, mas reduzi-lo somente
a um profissional dessa arte é desconsiderar a riqueza de sua variada
e extensa obra, toda ela produzida em pouco mais de 30 anos de atividade
crítica. Não se pode negar, contudo, que a polêmica o alimentava.
Já doente, embora os amigos próximos tentassem demovê-lo, lá estava
ele, outra vez, embrenhado num debate em jornal com um senhor que
atendia pelo nome de Ricardo Musse. Numa de suas réplicas, Merquior
ironizava: "Musse ou chocolate''?
Os estudos da produção intelectual de Merquior
tornam-se ainda mais difíceis em função da multiplicidade de interesses
do autor. Muitos que conhecem crítica literária desconhecem (ou
simplesmente não se interessam em abordar) a parte de teoria política
e história das idéias de sua obra. Isto tem se mostrado redutor,
impossibilitando uma visão global de sua produção, e fertilizando
o terreno para o nascimento de incompreensões de toda natureza.
Uma boa parte da obra de Merquior está sendo
preparada para publicação, entre elas um substantivo livro de ensaios
sob o título O Outro Ocidente, os muitos artigos de sua coluna
"A vida das idéias" em O Globo, os ensaios não incluídos
em A razão do poema, e o material extraído de entrevistas
nos jornais e na televisão. A idéia de reunir em livro suas polêmicas
é editorialmente tentadora mas, como o correto é publicar também
o texto rival, se acabaria por dar espaço a muita gente sem a estatura
intelectual necessária, e que então se beneficiaria da visibilidade
que o nome de Merquior proporciona.
Naturalmente existem ensaios excelentes sobre
Merquior: lembro aqui os de Sergio Paulo Rouanet - "O sagitário
do presente" e "Os herdeiros do Iluminismo", em As razões do
Iluminismo (Companhia das Letras, 1989), e "Merquior vivo",
em Mal-Estar na Modernidade; "Merquior, paladino da racionalidade
concreta", de Miguel Reale, sobre quem Merquior escreveu o último
ensaio em Figuras da inteligência brasileira (segunda edição
refundida e aumentada, Siciliano, 1994); de Roberto Campos a arguta
introdução a Liberalismo - Antigo e Moderno, livro póstumo de Merquior.
Isso para não falar do que sobre ele escreveram Eduardo Portella
e Celso Lafer, entre outros.
Merquior era um mestre da língua. Seria possível
fazer uma antologia onde sua verve se apresenta impagável. Um de
meus trechos preferidos está em artigo publicado no JB (01.09.79),
sob o título "Sabe com quem está falando?", onde comenta o recém-lançado
Carnavais, Malandros e Heróis, de Roberto da Matta. Ouçam
o show de destreza verbal e ironia:
"Um dos méritos de Roberto da Matta é, aliás,
o seu cuidado com a literatura anterior. Nada noto nele dessa pífia
presunção, feita de incultura e insegurança, com que vários dos
nossos mais novos praticantes de ciências humanas dão as costas
ao que se escreveu antes deles - com muita freqüência, muito melhor
- sobre seus temas. Em compensação, a linguagem de Carnavais,
Malandros e Heróis poderia ser mais apurada. O autor expõe,
em geral com clareza, não raro com certa elegância; mas volta e
meia sucumbe ao desleixo ou, pior ainda, a esse fraseado esquisito
com que tantos textos universitários macaqueiam gratuitamente palavras
e construções inglesas ou francesas. O desleixo abrange alguns anacolutos
e várias regências incorretas, além da estranha menção a um tal
"Alex" de Tocqueville (que intimidades são essas, Professor Matta?
O homem se chamava Alexis). O fraseado postiço inclui, por exemplo,
um emprego super-abundante do verbo "colocar" (em vez de "observar",
"pretender", "argumentar", "postular", etc.). Esse abuso de "colocar"
está virando uma verdadeira muleta verbal do nosso jargão universitário.
Mas quanto a Roberto da Matta, não tenho dúvida em (agora, sim)
colocar esse seu livro bem acima dessas mazelas de expressão. Ele,
pelo menos (ao contrário da maioria dos colocadores), tem muito
a dizer".
O autor do livro em questão pode até não ter
gostado da crítica, mas submeteu o livro a uma esmerada revisão.
É só comparar a primeira edição com a última para conferir.
* * *
Merquior estreou no Suplemento Dominical do Jornal
do Brasil. Embora seus primeiros artigos neste importante Suplemento
já aparecessem em 1959, só depois da hoje histórica nota editorial
assinada por Reynaldo Jardim é que sua colaboração lá se efetivou.
Num texto intitulado "Bilhete de editor", publicado no alto da página
em 30 de abril de 1960, lê-se:
"A primeira colaboração de JGM nos chegou como
centenas de outras através de nossa seção Correspondência. Bastou
ler o primeiro artigo para constatarmos que estávamos frente a um
legítimo escritor amplamente capacitado a colaborar conosco. Publicamos
o artigo e tempos depois chegou outro comprovando a categoria intelectual
de seu autor. Mais um ou dois artigos de JGM vieram às nossas mãos
sem que o conhecêssemos pessoalmente".
Reynaldo finaliza dizendo:
"Aqui estará ele, sem o compromisso do aparecimento
semanal, mas mantendo um certo ritmo em sua colaboração, que pretendemos
venha contribuir para a melhoria do nível de produção poética em
nosso meio".
Neste Suplemento, já no início de sua colaboração,
a verve e os golpes certeiros de Merquior se fizeram notar. Salvo
prova em contrário a primeira polêmica foi com o crítico de arte
Roberto Pontual, a quem o estreante responde no artigo "Miséria
e ingenuidade" (01.07.61)
"Já que ele me faz a honra de me ler, poderia
acrescentar o cuidado de me compreender. Onde foi que em qualquer
artigo eu exaltei a poesia neoconcreta como uma solução?
Onde foi que a saudei, ultrapassando uma simpatia que se impõe pela
honestidade e pelas intenções do movimento, como uma soma de resultados
e um estilo já realizado? (...) Só por três vezes o entusiasmo
quase total dirigiu minha crítica às obras do movimento: um ensaio
sobre experiências de narrativa plástica devidas a Lygia Pape, o
texto de "Galatéia I", consagrado aos bichos de Lygia Clark e finalmente
- única vez no campo da literatura - um esforço de compreensão do
chamado livro infinito, de Reynaldo Jardim. Todos esses dados
servem aliás de duplo argumento: se quiserem uma fé de ofício de
atenção e preocupação com o poema sem verso, aí estão para provar
que nunca o ignorei e que não é em virtude de um conceito convencional
que tenho julgado a poesia; mas para proclamar uma incoerência,
seria necessário enxergar neles mais do que realmente mostram: a
simpatia por um ensaio honesto, e não o reconhecimento de um resultado.
Ao mesmo tempo, minha enorme boa vontade para os artistas neo-concretos
ficou definitivamente demonstrada pela rapidez, embora lúcida, com
que eu adverti nas suas obras plásticas um imediato valor
de permanência. Se interessa a Pontual, posso afirmar desde logo
que considero o neoconcretismo muitas vezes mais realizado nesse
terreno. Não vejo o lado poético nesse mesmo nível de maturidade.
Prefiro Clark, Carvão, Amílcar, Pape, a todos os poetas do grupo.
Implicância? Mas não seria quase cretino, uma vez que trato muito
mais de poesia? A verdadeira razão é que distingo as experiências
vitoriosas das pesquisas ainda incompletas. É claro que amanhã mesmo
Lygia Clark poderá mudar mais uma vez o seu estilo: nada impedirá
que os bichos permaneçam na nossa escultura como valor inarredável.
Chamo a isso um experimentalismo maduro. Há exemplo semelhante na
poesia neoconcreta?
Entre as abordagens possíveis - e que vejo intocadas
- sobre a obra de Merquior está a de seu apreço pela arte, em especial
a pintura, de que é exemplo sua referência ao cubismo em João Cabral.
Já no início da atividade crítica, escreve um ensaio sob o título
"Neolakoon, ou da Espaciotemporalidade" (17.10.59), que chamou a
atenção de Leandro Konder. Entre os ensaios da fase no Suplemento
Dominical do Jornal do Brasil podería-mos ainda destacar
"Estudos sobre expressionismo: Hodler, Munch e Ensor (Extrato de
um ensaio sobre a gênese da pintura moderna)", de 59, "Introdução
a um pintor moderno: Degas" (23.01.60), a série "Galatéia ou a morte
da pintura", publicada em duas partes (a primeira em 26.11.60, e
a segunda em 07.01.61), afora "A criação do Livro da Criação", em
03.12.60, sobre obra de Lígia Pape. (Todo este material está por
publicar, pois Merquior não o incluiu em Razão do poema).
A estes, numa antologia de textos sobre pintura,
teríamos ainda que agregar os ensaios "Kitsch e antikitsch (arte
e cultura na sociedade industrial)", "O problema da interpretação
estilística da pintura clássica (um desafio para o método formalista)",
e "Sentido e problema do 'pop'- Pop e hiperrealismo", que dedicou,
entre outros, a Sergio Paulo Rouanet e Mario Chamie, todos em Formalismo
e tradição moderna (O problema da arte na crise da cultura),
de 1974; "A tirania da imaginação", em As idéias e as formas
(1981), "Arte? Que arte?" (27.11.88), e "Roubaram a pintura" (25.03.90),
ambos inéditos em livro, e só publicados em O Globo na coluna
"A vida das idéias", que manteve até a morte. Este último artigo,
que conta do roubo de uma coleção de quadros, Merquior começava
assim:
"Em 1955, sem tostão para comprar sequer uma
tela, o grande pioneiro do pop-art, Robert Rauschenberg, pegou o
edredom de sua cama, estendeu-o no chão, juntou-lhe o travesseiro
e pintou vigorosamente o conjunto. Batizada como "Cama", essa insólita
salada de lençol, cobertor e fronhas, espessamente pintados, foi
há pouco oferecida pelo conhecido marchand Leo Castelli ao Museu
de Arte Moderna, o famoso MoMA de Nova York. Valor atual estimado:
perto de 10 milhões de dólares. É o caso de dizer: faça a cama e
deite-se na fama..."
(.................................................................................)
E conclui com um lúcido diagnóstico: "Roubaram
a pintura, senhores - e não só dos museus mal guardados. Seqüestraram
a experiência estética de nossas vidas modernosas. O cinismo do
pseudo-artista, o terrorismo de falsos teóricos, o oportunismo das
galerias e o esnobismo pateta de um público tão ingênuo quanto inseguro
insistem em vender gato por lebre. A terrível trepidação da vida-reflexo,
banindo a vida da reflexão, se casa ao reino da grossura para nos
negar o refúgio da arte - a pausa da qual se volta intimamente mais
rico ao debate cotidiano. Rilke sabia que perscrutar um torso arcaico
de Apolo nos convida a mudar nossa existência. Dou um doce a quem
sentir algo de semelhante ao enxergar a enxerga pop no Moma".
Passaram-se os anos e não se desvaneceu essa
fixação de Merquior pelo tema. Sua biblioteca possuía quase todos
os volumes da Skira, editora que revolucionou o mercado dos livros
de arte nos anos 50 e 60; muitas obras de Erwin Panofsky, o mestre
da iconologia; de Frederick Antal, o historiador húngaro de feição
marxista que analisou pioneiramente as fundações do Renascimento
florentino; de Ernst Gombrich, o vienense que se mudou durante a
II Guerra para a Inglaterra e, ironicamente, ficou popular com sua
História da Arte, mas cujos estudos sobre o Renascimento
mudaram a maneira de se ver este período pelo qual Merquior sentia
verdadeira devoção; a abrangente História da Cidade, de Leonardo
Benevolo; os volumes de Giulio Carlo Argan, e muitos outros ensaístas
que mudaram a feição dos estudos artísticos no século. (Uma nota
lateral aqui vem a propósito: Merquior, parece-me que injustamente,
não dedicava o mesmo entusiasmo que seu amigo Alexandre Eulálio
à obra de um ensaísta da envergadura de Mario Praz).
A arte da era clássica da pintura fascinava Merquior.
O Ticiano de "O rapto de Europa", os Masaccio da Capela Brancacci,
que visitou pouco antes da morte; a obra de Poussin, entusiasmo
compartilhado com Claude Lévi-Strauss, seu mestre, autor de um ensaio
sobre o pintor cuja obra foi quase inteiramente produzida em Roma
("Olhando Pous-sin", em Olhar escutar ler, de 1993).
Nos anos 60, Merquior debruçou-se sobre a obra
de Merleau-Ponty. Dedicou ao filósofo da Fenomenologia da percepção
dois ensaios no Suplemento do JB: "O corpo como expressão
e a palavra - Merleau-Ponty" e "Merleau-Ponty: O cinema e a nova
psicologia" (01.10.60). Leu Sartre e Lukács, este nas edições italianas
que lhe passavam Leandro Konder e Carlos Nelson Coutinho. Mas o
Sartre que o entusiasmou foi o de As palavras, o do ensaio
inacabado sobre Tintoretto, o da aguda percepção sobre os móbiles
de Calder, o autor de páginas penetrantes de psicologia existencial.
No texto de apresentação do catálogo de uma exposição
do artista Marcos Duprat, Merquior escreveu:
"Há pelo menos duas décadas, com a fadiga do
abstrato, o paradigma da pintura ocidental voltou à imagem. À imagem
violenta ou plácida, impessoal ou retratística: daí o triunfo de
Bacon ou de Balthus, dos hiper-realistas ou de um Lucien Freud.
Mas, como advertiram os primeiros denunciantes da penúria do abstracionismo,
o retorno à figuração só ganharia consistência se passasse por um
novo rigor da técnica e da composição. Na plástica brasileira dos
últimos anos, ninguém encarna esse requisito com mais consciência
que Marcos Duprat.
Tranqüilamente, alheio ao frenesi neofágico das
propostas vanguardeiras, Duprat se refugiou na mais estrita fidelidade
ao que ele chama "o enigma da realidade visível". Esse enigma, os
óleos de Marcos Duprat o armam, decifram e rearmam num estilo translúcido,
cristalino, onde as mudanças cromáticas sugerem momentos de mágicas
metamorfoses. Os planos são dispostos, as camadas superpostas, a
cor nasce da "velatura" - um processo colorístico de nobre linhagem,
que exige um trabalho em ritmo artesanal, a léguas da herança turbulenta,
e ainda tão influente, de Pollock e sua tribo. Uma pintura lenta,
em adágio, propícia à meditação do duplo, à ponderação da série,
à perquirição da profundidade - todos temas desses óleos peritos
em focalizar o prolongamento de uma imagem noutra, o reflexo no
espelho ou na água, os corredores engavetados em túnel, a delicada
modulação de seqüências.
Quando ele aborda a figura humana, especialmente
nua, Duprat sabe ser tão sereno quanto Balthus - mas sem fazer da
cena o prelúdio a um drama de vício e malícia. Quando prefere objetos,
o silêncio das formas é tão lírico quanto um Morandi".
Cito esse longo trecho de crítica de arte de
Merquior porque é emblemático de como ele entendia a pintura, do
que gostava de ver em pintura. Não preciso dizer do tédio que nele
provocava a maré alta das instalações e artifícios do gênero que
começaram a invadir os museus nos anos 60 a partir do clima tão
ironicamente descrito pelo crítico de arte Robert Hughes nos capítulos
finais de American visions como a "era da ansiedade". Desse
modo corre Merquior o risco de ser visto como um conservador em
arte por membros da indústria e da camaradagem lucrativa entre marchands
e "artistas" (uso aqui aspas) que, mais e mais, toma conta do mundo
da arte.
* * *
Do livro inicial sobre a Escola de Frankfurt
até os anos maduros de sua atividade intelectual, Merquior vai ficando
cada vez mais crítico em relação à obra dos membros da Escola de
Frankfurt. O único ao qual se manterá ligado é Walter Benjamin:
em O marxismo ocidental percebe-se que o heterodoxo Benjamin
continua uma figura de sua estima intelectual.
Uma das contribuições decisivas de Merquior à
nossa cultura são os ensaios que produziu sobre nossos poetas maiores,
em especial Drummond, Murilo Mendes e João Cabral. Isso para não
falar de sua amizade com Bandeira, que o convidou para colaborar
com ele na seleção da antologia Poesia do Brasil. Numa carta
datada de Roma (19.11.72), Murilo Mendes lhe escreve para agradecer
o envio do novo livro, A astúcia da mímese:
Querido José Guilherme, Tenho tanto que lhe agradecer,
muito, muito, muito, e tantas desculpas que lhe pedir, pela falta
de cartas.
(...) Gratíssimo pelo cartão e pelo grande livro
que é A astúcia da mímese, pelo magnífico estudo sobre o
"Texto délfico" e o outro, idem, sobre a "Pulga parabólica" (...)
Estou muito feliz pela atenção que você dá aos meus papéis: isto
representa para mim um diploma, vindo de quem vem.
Gratíssimo, íssimo, íssimo.
Professor no King's College, em Londres, doutorou-se
em letras pela Sorbonne, orientando de Raymond Cantel, com tese
sobre Carlos Drummond de Andrade aprovada com louvor em junho de
1972. Depois de levar meses para acusar recebimento dos capítulos
que Merquior lhe enviava, Drummond respondeu:
"Eu poderia tentar justificar-me alegando que
esperava o rece-bimento do texto completo para lhe escrever. Mas
a verdade verdadeira é que, desde a leitura das primeiras páginas,
me bateu uma espécie de inibição que conheço bem, por ser velha
companheira de minhas emoções mais puras. Se você estivesse ao meu
lado nos momentos de leitura, decerto acharia graça na dificuldade
e confusão das palavras que eu lhe dissesse. Talvez até nem dissesse
nenhuma. E na minha cara a encabulação visível diria tudo... ou
antes, não diria nada, pois o melhor da sensação escapa a esse código
fisionômico. Senti-me confortado, vitalizado, vivo. Meus versos
saem sempre de mim como enormes pontos de interrogação, e constituem
mais uma procura do que um resultado. Sei muito pouco de mim e duvido
muito - você vai achar graça outra vez - de minha existência. Uma
palavra que venha de fora pode trazer-me uma certeza positiva ou
negativa. A sua veio com uma afirmação, uma força de convicção que
me iluminou por dentro. E também com uma sutileza de percepção e
valorização crítica diante da qual me vejo orgulhoso de nobre orgulho
e... esmagado. Eis aí, meu caro Merquior. Estou feliz, por obra
e graça de você, e ao mesmo tempo estou bloqueado na expressão dessa
felicidade".
Com João Cabral a amizade também era fraterna.
Li pelo menos uma carta de Merquior ao poeta dando conta de livros
encomendados e esgotados. Alguns, curiosamente, eram do crítico
desconstrucionista Paul de Man, sobre quem recaía então o interesse
de João Cabral; por estarem esgotados, Merquior informava estar
enviando cópias xerox. Digo "curiosamente" porque Cabral costumava
afirmar que não era de ler crítica.
Seus artigos sobre poesia e poetas são de leitura
obrigatória pela clareza, novidade da leitura e precisão da análise.
Nesta sala estão Ivan Junqueira, sobre cuja tradução da poesia de
T. S. Eliot Merquior escreveu favoravelmente; e Alberto da Costa
e Silva, cujo pai, o poeta Da Costa e Silva, ganhou um luminoso
ensaio de Merquior.
Ivan - que escreveu sobre José Guilherme Merquior,
e é um exigente leitor de poesia - contou que apenas em dois momentos
não pôde concordar com o nosso homenagea-do: quando Merquior analisou
a poesia de Capinam e a de Francisco Alvim. Para Ivan Junqueira,
nestes dois casos valeu mais a generosidade de Merquior que o bisturi
do crítico.
Continua... |