ANTÔNIO TORRES - UMA ANTOLOGIA
Alexei Bueno
Diz a lenda, uma dessas pitorescas lendas gregas,
que a ex-noiva de Arquíloco e o pai dela, de tanto serem vergastados
pelos versos do poeta terrível, se enforcaram. Se as suscetibilidades
morais da lenda fossem reais e duradouras, muitos laços deveriam
ter corrido no Brasil de 1910 a 1930, quando reinou insuperável
a prosa tremenda de Antônio Torres.
Nascido em Diamantina em 1885 e morto em Hamburgo,
como cônsul do Brasil, em 1934, Antônio Torres, ex-padre e o jornalista
mais lido desse período complexo da vida nacional, foi, para além
de tudo isso, o maior ironista, o maior polemista e o maior panfletário
do seu tempo, e um dos maiores prosadores brasileiros de qualquer
época. Dotado da mais sólida cultura, de uma coragem pessoal quase
quixotesca, de um desprezo supremo pelo establishment e de
um impiedoso senso do ridículo, pôs a público, em crônicas e artigos
de acuidade e humor sem paralelo, as mazelas e as misérias da vida
brasileira, atacando indivíduos e instituições, vivos e mortos,
homens e mulheres. Grande jacobino, de uma lusofobia que chegava
perto do delírio, foi o inimigo mais empedernido da colônia portuguesa
do Rio de Janeiro, numa época em que essa colônia controlava a quase
totalidade do comércio e da imprensa. Entre suas vítimas de predileção,
às quais jamais prodigalizava o refrigério de uma trégua, estavam
a Igreja Positivista, o culto a Benjamin Constant, João do Rio,
Antônio Austregésilo, Felinto (ou F'linto, como ele escrevia) de
Almeida, a Academia Brasileira de Letras, Gilka Machado, etc. Se
nem sempre foi justo, foi sempre brilhante, e não é mais do que
isso o que se pede, em qualquer tempo e lugar, aos grandes panfletários.
Contemporâneo do Modernismo, dele nunca se aproximou,
o que estava de pleno acordo com a independência feroz do seu caráter,
que o afastaria de qualquer grupo, como o afastou da Igreja. Colaborou,
no entanto, com o movimento, como bem observou Otto Maria Carpeaux,
na medida em que ajudou a demolir, com o seu verbo genial, vários
dos ídolos ocos que interessava àquele demolir. E se, por um lado,
foi destruidor implacável, foi por outro dos mais brilhantes críticos
da época, bastando para comprová-lo artigos como "O centenário de
Wagner", onde surge o grande conhecedor de música que era, e "Um
poeta da morte", dos primeiros estudos com uma verdadeira compreensão
de Augusto dos Anjos, que passaria inclusive a prefaciar numerosas
edições do Eu.
Embora escrevendo sobre toda a vida da época,
brasileira e internacional, o mineiro Antônio Torres se inscreveu
definitivamente na lista dos grandes cronistas do Rio de Janeiro,
pequena lista onde o acompanham monsenhor Pizarro, o padre Perereca,
Melo Morais Filho, Vieira Fazenda, Ernesto Sena, Luís Edmundo, Vivaldo
Coaracy, Lima Barreto, o seu arquiinimigo João do Rio, Gastão Cruls,
Brasil Gerson, Sérgio Porto e pouquíssimos outros. Porque, ainda
que nascido na cidade dos contratadores e falecido na terra de Brahms,
foi nesta lamentavelmente ex-capital federal que ele colheu a grande
matéria-prima para os livros extraordinários que são Da correspondência
de João Epíscopo, Pasquinadas cariocas, Prós e contras, Verdades
indiscretas e o terrível As razões da Inconfidência,
para não falar dos muitos textos dispersos.
A presente antologia, fruto de longa e admirável
pesquisa de Raul de Sá Barbosa, vem refazer o contato perdido entre
o público brasileiro e uma obra preciosa, que está a pedir reedição
integral, e que se encontrava vergonhosamente esquecida. Nenhuma
literatura pode se dar ao luxo de olvidar estilistas da altura de
Antônio Torres, e nenhum país pode jogar ao limbo figuras fascinantes
como o próprio. Se muitas vezes foi injusto, se errou muitas vezes,
seguramente com maior freqüência ele acertou e fez justiça. E, no
ambiente de frivolidade e pusilanimidade em que conviveu com nossas
elites eufêmicas, foi indubitavelmente um gigante moral, como um
Euclides da Cunha, um Manoel Bomfim, um Monteiro Lobato e bem poucos
outros.
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