ENSAIOS REUNIDOS, 1942-1978 /
VOLUME I: DE A CINZA DO PURGATÓRIO A LIVROS NA MESA
A importância da atuação
de Otto Maria Carpeaux na cultura nacional é um fato que
nunca foi contestado, embora nem sempre compreendido em sua extensão
humanística. Durante a sua vida, formou-se em torno dele
um grupo de intelectuais e artistas que nele encontraram, em primeira
mão, as tradicionais heranças que sempre buscáramos
na Europa, momentaneamente interrompidas pela segunda guerra mundial.
Agora, 21 anos após sua morte, com a reedição
cuidadosa de suas obras principais pela Editora da UniverCidade
— sob orientação de Olavo de Carvalho —
em convênio com a Topbooks, as novas gerações
nele poderão encontrar a visão abrangente de um verdadeiro
scholar, de um espírito superior que armazenou amplos
conhecimentos em vários setores da cultura ocidental e soube
transmiti-los em notável coleção de ensaios,
artigos e estudos.
No substancioso prefácio de Olavo de
Carvalho temos um painel crítico desse importante momento
da vida cultural brasileira. Ao mesmo tempo em que Carpeaux transmitia,
também assimilava, interpretava e ampliava a nossa realidade
intelectual. Daí que dois dos maiores espíritos daquela
época — Carlos Drummond de Andrade e Alceu Amoroso
Lima — apesar de cultivarem pontos de vista diferentes, uniram-se
em consenso para realçar a importância do autor de
A cinza do purgatório no panorama paroquial de nossa
cultura.
Curiosamente, Carpeaux e Olavo não se
conheceram. Um dos desencontros que considero mais cruéis
do destino, uma vez que os dois, guardadas as posições
radicalmente pessoais de cada um, tinham um approach idêntico
da condição humana. Até mesmo na capacidade
da exaltação e da polêmica. De minha parte,
considero-me redimido por encontrar na presente edição
das obras de Carpeaux o sonho que persegui durante anos mas que
não tive tempo e competência para realizar.
Carlos Heitor Cony
Carpeaux
conhecia a fundo todos os clássicos, todos os pensadores,
todos os compositores eruditos, todos os pintores (...) Era generoso,
paciente com jovens ignaros como eu e divertidamente intransigente
e irascível quando provocado por fatos e juízos que
julgasse equivocados, insultuosos ou apenas absurdos. Adorava uma
frase atribuída a Samuel Johnson — “Ortodoxia,
senhor, é a minha doxia; heterodoxia é a doxia
de outro homem” —, que por uns tempos julguei ser de
sua autoria, tanto a usava para obliquamente se autodefinir. Na
verdade, não era ortodoxo nem heterodoxo, preferindo uma
relação dialética entre esses dois extremos.
Sérgio Augusto
Quando,
por volta de 1950, comecei a me interessar por literatura, descobri,
encantado, nas páginas do Diário de São
Paulo, um mundo absolutamente novo para o ginasiano de 13 anos.
Era o mundo dos homens e dos livros trabalhados pela leitura de
Otto Maria Carpeaux em artigos cheios de verve, poesia e paixão.
Posso dizer que, durante anos a fio, não bebi de outra fonte
em matéria de crítica literária. E os que conhecem
de perto a ciência do mestre sabem o quanto de cultura viva
e sem fronteiras pulsava dentro daquela sua crítica ‘literária’.
É provável que muito da informação universal
de Carpeaux tenha caído da memória deste e de outros
leitores seus. Mas o que ficou, espero que nos marque para o resto
da vida.
Não se trata de fazer um inventário
de bens. Os bens são demasiados e, como na divisa célebre,
cada um procurará o que já encontrou. Mas convém
não perder o essencial: a ampla margem de liberdade que o
crítico se atribuía ao enfrentar qualquer autor e
ao exercer qualquer método.Carpeaux atravessou a crítica
positivista, a idealista, a psicanalítica, o new criticism,
a estilística espanhola, o formalismo, o estruturalismo,
a volta à crítica ideológica... Mas, educado
junto aos culturalistas alemães e italianos do começo
do século, ele sabia que nada se entende fora da História.
O ensaísmo de O. M. Carpeaux é
um diálogo com a historicidade profunda de todas as obras.
Essa posição pode, como tantas outras, virar fórmula
e produzir leituras redutoras. Mas em um leitor dialético
(e Carpeaux foi o nosso primeiro leitor dialético) o risco
evita-se desde primeiro passo. O mundo histórico onde se
movem os seus autores, sejam eles Dante ou Swift, Dostoievsky ou
Graciliano, é a sociedade concreta, multiplamente
determinada, de cada um deles, com suas classes e grupos, inclusive
grupos literários e artísticos, que vivem dentro de
certos campos de tensão. O crítico refere esses campos
às ideologias presentes ou disfarçadas nos textos.
Daí, a sua interpretação ser uma descoberta
dos valores e dos antivalores que se realizam ora na personagem
de um romance, ora no desfecho de uma tragédia.
É uma leitura dramática. Uma leitura
enraizada no solo dos conflitos e na consciência de que os
conflitos buscam sempre algum modo de resolver-se na linguagem da
obra. Da ideologia ao estilo, do estilo à ideologia, estes
os caminhos recorrentes da sua sondagem dos textos.
Alfredo Bosi
O estilo
de Carpeaux é muito pessoal, muito direto, muito denso. O
conhecimento de tantas literaturas, fundamente assimiladas, imprimiu-lhe,
ao mesmo tempo, o máximo de variedade e concentração.
Notar-se-á que é um estilo vivo, preciso e ardente.
Às vezes, enérgico e áspero. Nestas ocasiões,
sobretudo, este estilo está confessando um temperamento de
inconformista, de panfletário, de debater. O temperamento
de um homem que, monologando ou dialogando, está sempre numa
atitude de luta: ou a luta interior, consigo mesmo, ou a luta exterior,
com os seus adversários.
Álvaro Lins (apresentando Carpeaux
ao Brasil no artigo “Um novo companheiro”. Correio da
Manhã, 19.4.1941)
Não
é um escritor — é uma enciclopédia viva.
Mas, mais do que uma enciclopédia viva, é um homem:
na coragem de suas convicções, na bravura de suas
atitudes, na limpidez de sua visão — um rebelde inato.
Sua linhagem — a dos grandes humanistas. Quando chegou ao
Brasil, e se fez brasileiro de coração, alma, pensamento,
a sua doação à nossa cultura foi precisamente
esta: a do humanismo. Enriqueceu o nosso saber, aproximando-nos
ainda mais da única linha com a qual a cultura brasileira
deve correr paralela, se quiser ser uma das sustentações
do Ocidente: a da cultura européia.
(...) Estudou mais o Brasil do que brasileiros
que só o são por mera circunstância genetlíaca.
Uma das mais lúcidas e originais histórias da nossa
literatura é a sua pequena Bibliografia crítica
da literatura brasileira.
Franklin de Oliveira
Otto Maria
Carpeaux poderia ter sido o que quisesse: cientista, professor,
crítico de arte, de música ou de literatura, líder
político, doutrinador. Por circunstâncias da vida teve
de sair do seu país, a Áustria, acossado pelo nazismo,
e no Brasil se tornou uma espécie de polígrafo, um
herói civilizador, diria Roberto Schwartz (como Anatol Rosenfeld
ou Roger Bastide). O seu instrumento principal foi o jornal, adaptado
à variedade das vocações, e nele exerceu, além
da função profissional de redator, a de escritor e
de lutador político. (...) Além de ser um homem apaixonado,
voluntarioso e combativo, Carpeaux era desses casos raros de capacidade
universal, pois lia e aprendia muitas vezes mais do que os outros.
Foi o que mostrou desde logo no Brasil, para onde veio em 1939.
Antonio Candido
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