CHAPLIN E OUTROS ENSAIOS
Meu primeiro Cony foi A verdade de
cada dia, lido em modesta edição de bolso, em
1963. Desde então me tornei frequentador assíduo de
sua prosa, seja no terreno da ficção – em que,
entre outros, nos legou Pilatos (1974), uma das raras obras-primas
do romance brasileiro do século XX – seja no campo
das crônicas, com suas incisivas, satíricas ou líricas
incursões à vida e aos (maus) costumes do país.
Agora, outra faceta de sua criatividade se destaca
neste Chaplin e outros ensaios. Se a excelência da
prosa literária se mantém no nível a que nos
habituamos no romance e na crônica, o ensaísmo desvela
a erudição de Cony; mas, ressalte-se, uma erudição
ortodoxa, nada acadêmica, que não escamoteia o amor
(e eventuais atritos) frente aos objetos de estudo. Numa gama extensa
de autores e temas, sobreleva a figura de Chaplin/Carlitos –
que, aliás, foi igualmente contemplado na primeira publicação
do autor: a plaquete Chaplin – Tortura e glória
de um gênio, de 1956.
É notável a acuidade interpretativa
de Carlos Heitor Cony no enlace vida/obra, e no zelo com
que assinala, de um lado, não ser possível explicar
a obra pela vida; e, de outro, ser impossível dissociá-las.
Da literatura latina à ficção de Rachel de
Queiroz, nada parece escapar de seu desejo de conhecer, e de sua
capacidade de propagar tal desejo – o que, afinal de contas,
deveria sempre constituir-se num dos fundamentos do ensaísmo.
Partimos de Londres e desembarcamos em Roma,
nas versões sem (Fellini) ou com incêndio (Nero), tendo
direito a escalas no Cosme Velho e no Hospício da Praia Vermelha,
entre outras. Transitamos das excelentes observações
sobre o romance carioca (a partir do trio Manuel Antônio de
Almeida/ Machado de Assis/Lima Barreto) às sutis considerações
acerca da poética de Álvares de Azevedo. Pensadores
e poetas em baixa no mercado de ações literário
tornam-se alvo de criteriosa reavaliação (Teilhard
de Chardin, Victor Hugo).
O que caracteriza o ensaísta Cony, paralelo
à sua inteligência, é a independência,
o desassombro em ficar à contracorrente do pensamento majoritário.
No endosso de sua feroz individualidade, não seria arbitrário
evocar o – também crítico e solitário
– personagem Carlitos. Mas se na visão do poeta Drummond
os sapatos e o bigode de Carlitos caminham numa estrada de pó
e de esperança, na visão desencantada de Cony a estrada
humana comporta muito pó, e quase nenhuma esperança.
Por isso tanto nos comove, e tão pouco nos consola.
O que mais demandar de um escritor senão
devolver-nos à nossa própria precariedade? É
a esse passeio radical através da literatura alheia que nos
convida Chaplin e outros ensaios.
Antonio Carlos Secchin
Quando conheci Cony, ele me perguntou
como eu tolerava escrever sobre a política chinfrim brasileira.
Boa pergunta até hoje. Quando houve o golpe de 1964, morri
de medo. Me escondi durante 15 dias na garçonnière
de um amigo em Ipanema. Cony, apolítico, ficou furioso quando
seus amigos foram presos, e começou uma campanha sozinho,
no Correio da Manhã, contra o arbítrio da ditadura.
Foi ameaçado de espancamento, morte, e processado pelo ministro
do Exército, Costa e Silva.
Uma noite, Antônio Maria, Ivan Lessa e
eu estávamos num bar, em Copacabana, o Rond Point, e vimos
Cony, vindo da praia, quando estava sendo anunciado no rádio
que se decretara a prisão dele. Perguntamos onde andava.
Respondeu que no Bolero, um bar na praia, de mulheres da vida.
Toda nossa geração passou pelas
angústias do protagonista de Pessach: a travessia.
Mas de sua obra o meu preferido é Informação
ao crucificado. Cony é um artista, um colega, um amigo,
e conhecê-lo enriquece minha vida.
Paulo Francis |