RAÍZES DO BRASIL
Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda, foi publicado pela José Olympio em 1936, às vésperas da implantação do Estado Novo. Era o primeiro título da coleção Documentos Brasileiros, dirigida por Gilberto Freyre, que elogia o autor na introdução. Se todos os livros têm um destino, como disse Terenciano Mauro, o de Raízes foi único entre nós. Seu aparecimento não causou grande impacto. Só foi reeditado em 1948, 12 anos depois. Até a quinta edição, em 1969, teve média de uma reedição a cada 6,6 anos, índice bom, posto que modesto. No entanto, de 1969 a 1984, durante a ditadura militar, as reedições amiudaram-se, atingindo a média de quase uma por ano, em ritmo de verdadeiro best-seller. Após a redemocratização, em 1985, houve redução no número das reedições, que, no entanto, ainda mantiveram uma taxa robusta de uma a cada quatro anos.
A grande mudança no conteúdo do livro teve início na segunda edição, quando o autor o alterou, em suas palavras, “abundantemente”. As modificações prosseguiram até a edição de 1969, que estabeleceu o texto final. Esta edição teve um prefácio de Antonio Candido que, aliado às mudanças feitas pelo autor, afetou profundamente a recepção do livro. Desde 1948, avaliações e conceitos presentes na primeira edição foram ajustados ao novo momento político e às novas posições de Sérgio Buarque. De 1939 a 1945, como muitos outros intelectuais, Sérgio foi funcionário do Estado Novo, primeiro no Instituto Nacional do Livro, depois na Biblioteca Nacional. Em 1946, no entanto, um ano após o fim da ditadura, estava de volta a São Paulo e tornara-se militante da Esquerda Democrática. Daí as mudanças em sua obra original.
A segunda edição alterou, sobretudo, o conceito de cordialidade, mas também modificou as avaliações da herança ibérica e da democracia. O resultado final das alterações no texto e na recepção foi que um livro, cuja primeira edição fora usada por Almir de Andrade para justificar o Estado Novo, recorrendo para isso ao conceito de cordialidade, passou a representar uma visão progressista e popular da política, um marco na luta contra a nova ditadura inaugurada em 1964.
Mudanças nas ideias de autores, refletidas em reedições, são frequentes e perfeitamente legítimas. Também são comuns as alterações na recepção que pontuam a fortuna crítica dos livros. Mas houve algo original na recepção de Raízes. Trata-se do fato de que, aos poucos, a primeira edição foi sendo relegada ao esquecimento e o texto modificado passou a ter sua data de nascimento deslocada para 1936. A falta de acesso à primeira edição facilitou essa mágica, talvez única em nossa história intelectual.
É esse complexo percurso de Raízes que Luiz Feldman descreve em seu livro, com base em ampla pesquisa, vasta bibliografia e cuidadosa argumentação. Ao fazê-lo, o autor presta importante serviço a nossa história intelectual, sem diminuir em nada a relevância adquirida pela obra. Sérgio Buarque, que sempre admitiu os problemas da primeira edição e que era um grande historiador, atento à dinâmica das coisas humanas, não reclamaria.
José Murilo de Carvalho |