MINHAS RECORDAÇÕES
Tipo realmente
admirável sob muitas faces esse Ferreira de Rezende, mineiro
de boa origem, parente de marqueses e grandes do Império,
e que foi sempre de uma austeridade, e de uma simplicidade que poderiam
ser chamadas de republicanas — à maneira norte-americana
dos bons tempos — se não conviesse mais denominá-las
à mineira, como características dos melhores exemplares
humanos de sua província. Ao lado disso, a cada passo do
livro se vão sucedendo os sinais de seu espírito inquieto,
de sua curiosidade, de sua compreensão, do seu dom de interessar-se
pela vida, de comunicar-se — qualidade esta que estaria em
contradição com a “misantropia” ou “hipocondrismo”
de que o memorialista por vezes se acusa.
Mas, se este livro interessa pelo homem
que nos aparece mineiramente numa “tal ou qual autobiografia”,
impõe-se em primeiro lugar como um documento de excepcional
valor acerca da vida social e de família, dos costumes, das
tradições, de tudo que é mais característico
do Brasil e, particularmente, de Minas Gerais, entre os anos de
1830 a 1890.
Octavio
Tarquínio de Sousa,
prefácio à 1ª edição
O testemunho é, sem dúvida,
o caso de Minhas recordações, de Francisco
de Paula Ferreira de Rezende, um filho de coronel nascido em 1832
em Campanha, Minas Gerais, formado em Direito nas Arcadas de São
Paulo, procurador, juiz de órfãos, deputado, vice-governador
da província de Minas e procurador-geral da República,
quando faleceu no Rio de Janeiro em 1893. E ele foi ainda viajante,
etnógrafo, conservador, e republicano apaixonado. “Escritas
às pressas e com a intenção de ser simples
lembrança para os filhos”, como o autor modestamente
informa no preâmbulo, suas Memórias, ao contrário,
fundam uma das mais ricas heranças intelectuais e literárias
dos Oitocentos. Apoiadas num texto de notável elegância,
recheadas das mais fecundas informações, elas têm
por objetivo salvar do completo olvido costumes e tradições,
homens e fatos com os quais cruzou no caminho de sua vida. E eles
foram inúmeros. (...)
Escrito ao final da vida, quando o Brasil escravista
e cafeeiro declinava, Minhas recordações é
também uma resposta pessoal à morte. Seu texto, espaço
coletivo e ritual de uma família ao longo da história
do Brasil, tem o dom de ir, cirúrgica e elegantemente, lá
onde há carne e sangue. Carne e sangue que, como dizia o
historiador Jacques Le Goff, é a matéria mesma dos
homens e da História. E, como todas as maravilhosas viagens
ao passado, este é um livro que percorremos sem querer que
se acabe.
Mary del Priore,
prefácio à 2ª edição
Minas Gerais produziu o melhor livro
brasileiro de memórias do século XIX, as Minhas
recordações, de Francisco de Paula Ferreira de
Rezende, escritas de 1887 a (provavelmente) 1890 e publicadas apenas
em 1944.
No famoso Minha formação,
Joaquim Nabuco atenua o caráter exemplar do que narra, porque
traz a primeiro plano uma personalidade bastante narcísica,
embora eminente, dando exemplo de como o dado pessoal pode se dissolver
na vaidade, a mais particularizadora das forças que atuam
em nós. Ferreira de Rezende, ao contrário, alcança
naturalmente o cunho generalizador através da sua candura
arguta e do desejo de fazer viver o seu tempo e o seu meio, graças
ao relato da sua vida.
Ferreira de Rezende é um escritor direto
e aparentemente tosco; mas o seu estilo, peculiar e original, é
uma espécie de revelação constante da realidade,
inclusive pelo caráter abrangente e penetrante dos períodos
longos, acumulados e cheios de matéria, com um uso muito
pessoal do ponto-e-vírgula, que lhe serve para construir
sólidos blocos narrativos e dissertativos sem perder a clareza
nem a concatenação das partes.
(...) Por tudo isso, depois de Marília
de Dirceu, tomemos Minhas recordações como
exemplo da capacidade demonstrada por tantos mineiros de, inserindo
o eu no mundo, mostrar os aspectos mais universais nas manifestações
mais particulares, num avesso da autobiografia estritamente individualista
do tipo Nabuco, da qual o interesse é de outro tipo e consiste
em reduzir o geral à contingência do particular.
Antonio Candido,
“Poesia e ficção na autobiografia”,
em A educação pela noite & outros ensaios |