LÁGRIMAS E TINTA
Lyslei Nascimento
Uma antiga lenda judaica afirma que Deus
conta as lágrimas das mulheres. Que dizer se essas lágrimas
se apresentam como tinta, a tinta com que se escrevem a dor e o
luto das perdas de quem escreve? Uma mulher?
Autora de ensaios, contos, romances e poemas,
Maria José de Queiroz sublima, no livro dedicado à
mãe, sua produção intelectual: resgata, de
coração a coração, momentos de cumplicidade,
de dor e de melancolia, de amizade, leituras e encantamento; com
Monsenhor Messias, em Belo Horizonte, com Carlos Drummond de Andrade,
no Rio de Janeiro – só para citar alguns dos amigos
que agora iluminam as páginas deste livro. Sua pena e penas
ferem o papel em cicatrizes, numa tatuagem sobre a pele. Que se
precavenha o leitor desavisado: não as tome por trilha de
caminhos que se bifurcam... Alheio ao legato em tom menor
deste Confiteor, poderão escapar-lhe as variações
do que é, na verdade, um oratório (à maneira
de Bach).
MARIA JOSÉ DE QUEIROZ é
autora de ensaios fundamentais, que demonstram sua erudição
e vário interesse, como A literatura e o gozo impuro da
comida, de 1994; Os males da ausência ou A literatura
do exílio, de 1998, e Em nome da pobreza, de 2006.
Destaco, dentre seus romances, Homem de sete partidas, de
1980, com prefácio primoroso de Pedro Nava, e Joaquina,
filha do Tiradentes, de 1987, republicado dez anos depois em
edição integral, com posfácio da autora, pela
Topbooks. A poesia de Maria José é um exercício
estético rigoroso entre a exatidão e a multiplicidade.
Em Resgate do real: amor e morte, de 1978, o tinteiro melancólico
da autora torna-se ponto máximo de sua escrita poética.
Empenho da memória que fia e desfia o
passado, O LIVRO DE MINHA MÃE tenta recuperar a infância,
a perda do pai, ainda criança, a fibra e a coragem da mulher
forte que foi Honória, sua mãe. A poesia, a música,
as histórias de Minas – eis o elo que une mãe
e filha, em simbiose. Inscrita na longa tradição de
escritores que, no luto, tentam explicar a grande falta que é
a morte da mãe, Maria José de Queiroz faz ecoar os
fragmentos de Diário do luto, de Roland Barthes, em
que o escritor trata de “uma dor absurda, impossível
de contornar”. De forma mais expressiva, entoa, em dueto com
Albert Cohen, autor de Le livre de ma mère, “uma
noite com palavras”, a celebração da mãe,
de todas as mães. Os dois textos comparecem, sanguíneos,
no correr das páginas de O livro de minha mãe.
Artesã da palavra, como bem definiu Pedro
Nava, Maria José de Queiroz faz uma louvação
às mães: a todas elas, a mãe. Enquanto fere,
sua escrita vai gravando, na pele, múltiplas imagens de flores,
corações, rendas, asas, inscrições,
algumas muito antigas, outras próximas, comuns a todos os
leitores. Num recriar do fio da vida, o livro exorciza demônios,
refloresce cicatrizes: tinteiro aparentemente seco e melancólico,
converte-se em crisol de alquimista, fonte que transforma lágrimas
em tinta.
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