| O BRASIL NA HISTÓRIA, OU “A 
              PÁTRIA ABANDONADA” Passado o tempo dos anátemas e 
              das caricaturas, é urgente descobrir o pensamento daqueles 
              que interpretaram os problemas de nosso país no início 
              do século passado. Médico, historiador, psicólogo, 
              professor, Manoel Bomfim (1868-1932), nascido em Aracaju, foi um 
              desses pioneiros a se debruçar sobre os paradoxos de um Brasil 
              recém-saído da República.   Sabemos que a posteridade dos pensadores é 
              versátil, e largamente tributária do que Hegel denominou 
              Zeitgeist, “o espírito do tempo”. Enquanto 
              Bomfim escrevia O Brasil na história, finalizavam-se 
              as negociações resultantes da I Guerra Mundial. A 
              Europa, após breve recuperação econômica, 
              iria conhecer um dos períodos mais sombrios de sua existência: 
              fome sem precedentes, impactos da crise econômica de 1929, 
              ascensão da xenofobia e do antissemitismo, consolidação 
              dos fascismos. Internamente, apostava-se na construção 
              de uma nação moderna e desenvolvida. A proposta, porém,convivia 
              com a dura realidade de uma população mergulhada no 
              analfabetismo, marcada pelo escravismo, fornecedora de mão 
              de obra desqualificada e submetida à política oligárquica. 
              Explicações para o anacronismo? A mestiçagem, 
              o clima tropical, uma história medíocre. Carecendo 
              de identidade, povos mistos jamais teriam chance de sucesso – 
              diziam alguns intelectuais. Outros sugeriam o “branqueamento” 
              como saída para o atraso. A matriz racial era a base das 
              discussões, e através dela se tentava interpretar 
              as razões de nossas desigualdades.  “Não é tal juízo 
              que nos deve doer, e sim a interpretação que dão 
              a esse atraso”, reagia Bomfim. Ao contrário da maioria 
              de seus contemporâneos arianistas, ele defendia e valorizava 
              a miscigenação, negando as teorias racistas em voga. 
              Sem renunciar ao debate ou se resignar às modas intelectuais, 
              via na educação e no sentimento de cidadania “a 
              consciência de direitos e deveres” e o “remédio” 
              para o Brasil. No entreguerras, as ideias de Bomfim foram regadas 
              a um patriotismo acelerado pela experiência profissional numa 
              Europa que se armava e rangia os dentes para o estrangeiro. Não 
              à toa, ele fustigou ferozmente os modismos intelectuais de 
              além-mar, especialmente os vindos da França, que então 
              apaixonavam as elites nacionais.  Com engajamento raramente visto, Bomfim colocou 
              a lupa sobre os manuais de história, revelando a que ponto 
              eles ajudavam não a recordar, mas a esquecer. Segundo ele, 
              isso se fazia para glorificar a versão dos vencedores, ou 
              seja, “a história que mais convém ser contada”. 
              Nos livros, nada significávamos. A “pátria de 
              certo modo abandonada”, como morta, se deixava enterrar sem 
              protestos. E, com ela, as tradições, a autoestima, 
              a cidadania.  Ao apontar o papel passivo que tais manuais atribuíam 
              ao Brasil, Bomfim sublinha a “deturpação das 
              tradições nacionais” e a falsificação 
              da história por autores “egocêntricos”. 
              A modernidade se fazia sem nós, rejeitados. Contra eles – 
              martelava – carecia fazer história de uma perspectiva 
              patriótica e transformadora, colocando os brasileiros como 
              atores principais, não coadjuvantes. Conhecer o passado significaria 
              preparar o futuro, e, pioneiramente, retirar personagens das sombras 
              e valorizar episódios esquecidos, longe das “torpezas 
              impostas” por Portugal. E mais: era preciso combater – 
              hoje diríamos relativizar – o olhar de autores estrangeiros 
              que escreveram sobre o Brasil, com seus “erros e invencionices”. 
             Com palavras duras – “achincalhe, 
              calúnia, degeneração” – Bomfim 
              releu furiosamente documentos, exumou informações, 
              corrigiu seus predecessores. Por meio dessa nova história, 
              os brasileiros poderiam conhecer o progresso do país feito 
              por eles mesmos. Não uma história produzida de fora 
              para dentro, em que o país fosse resultado de injunções 
              externas ou da ação de “grandes povos”, 
              mas sim o produto da revisão de suas próprias forças, 
              atos de coragem e ação de sua gente. E por que ler Bomfim hoje? Porque sabemos que, 
              assim como o progresso não caminha sem memória, a 
              memória não avança sem progresso. Daí 
              a luta incansável do autor por uma educação 
              que fosse memória e uma memória que fosse história 
              e identidade. Cidadania e liberdade? Só conhecendo o passado 
              e, nele, o papel dos brasileiros. Em tempos de revisões historiográficas, 
              em que tantos se perguntam sobre as condições de produção 
              da história, é hora, pois, de ler Manuel Bomfim, e 
              de fazê-lo com respeito e atenção. Afinal, sua 
              obra, livre e emancipada, é simultaneamente recurso e fonte 
              para compreender uma das mais incomuns interpretações 
              do Brasil. Mary del Priore       QUARTA CAPA Manoel Bomfim foi precursor de sociólogos 
              e historiadores, como Gilberto Freyre, de Casa Grande & Senzala 
              (1933), Sérgio Buarque de Holanda, de Raízes do 
              Brasil (1936), e Caio PradoJr., da História Econômica 
              do Brasil (1945). Todos deram ênfase aos fatores sociais 
              e culturais, e não mais étnicos ou climáticos, 
              na interpretação da história e da sociedade. 
              (...) Abordou, em O Brasil na História (1930), a historiografia 
              sobre o país, escrita tanto por brasileiros quanto por estrangeiros. 
              Criticou a “deturpação das tradições 
              nacionais” feita por historiadores como Francisco Adolfo de 
              Varnhagen – cuja obra seria uma “história para 
              o trono” – que defendia os interesses de dominação 
              da Coroa portuguesa. Para Bomfim, a história deixou de ser 
              “orientadora e estimulante do progresso social” ao ter 
              sido falseada em proveito das elites e do Estado, deixando de lado 
              os interesses dos vencidos e excluídos. A chamada “história 
              universal” teria sido elaborada pelas nações 
              mais poderosas, com o intuito de ressaltar sua própria grandeza 
              em detrimento dos povos dominados, aos quais era imposta tal versão 
              colonial ou neocolonial de seu próprio passado. Roberto Ventura |