O
FÍGARO DA LAPA
Antonio Carlos Secchin
da
Academia Brasileira de Letras
O
fígaro da Lapa, de Idalino Cavalcante, é uma obra
engajada: engajada na defesa da arte e no tributo à beleza.
Ambientado na Lapa de fins dos anos 1940, o texto, conduzido com
desencanto pelo narrador-personagem Romino (rima perfeita de Idalino),
exibe, em grau superlativo, novas facetas do talento do autor, que
estreara nos vigorosos e desabusados contos de Os safos festejam
ao anoitecer. Mas o que no livro de 2005 era linguagem agressiva
e vertiginosa agora se transmuda em sutil reflexão sobre
os inevitáveis limites que a vida acaba por impor a quem
sonha dedicar-se de modo irrestrito e puro ao mundo da arte.
Em
linhagem diversa dos chamados “romances de formação”,
este é romance de deformação e de barganha
dos ideais: o jovem pintor de mulheres sofridas se transforma aos
poucos no bem-sucedido artista comercial que abastece as donas de
casa com imagens sedutoras de modernas cozinhas norte-americanas.
Na travessia entre esses dois pontos, balizados pela troca da intensidade
(da experiência estética) pelo acúmulo (da conta
bancária), convivemos com a misteriosa companhia italiana
de ópera abrigada num estranho sobrado da Lapa, onde Romino
encontrará guarida e presenciará cenas e episódios
cujo sentido não se oferta de imediato à sua compreensão.
Pela
memória do protagonista fluem também as evocações
de seus laços de sangue, em especial na figura dos irmãos,
que, ao contrário dele, não transigiram no cultivo
de vocações e desejos, seja no campo da luta política,
na clausura dos conventos ou no compromisso do ator para com o teatro.
Pasquale, o fígaro-bufão, é uma espécie
de mestre de cerimônias da ópera-narrativa, abrindo
a cena no primeiro capítulo, quando sugere a Romino a hospedagem
no casarão, e fechando as cortinas do espetáculo na
derradeira página, ao revelar a identidade do personagem
de Mme. Butterfly, ocasião em que – como o leitor
irá constatar – irônica e sutilmente arte e vida
voltam a entrelaçar-se, ainda que ao preço da morte.
Em
O fígaro da Lapa, a arte imita a arte. Os esboços
de retratos a óleo ou carvão, cujo término
o pintor insiste em protelar, encontram correlato na técnica
de construção inconclusa dos personagens, compostos
em linhas morais tênues e ambíguas, sem que consigamos
enxergar-lhes o verdadeiro rosto. O narrador insinua que, na pintura
ou na literatura, nenhum traço é definitivo ou imune
ao retoque, nenhuma versão pode arvorar-se de autêntica.
Tal poética da instabilidade se espraia até o nível
da língua, na bem tramada infiltração de idiomas
que compõem uma criativa salada ítalo-portuguesa,
com pitadas hispânicas, e que Idalino Cavalcante nos oferta
em seu refinado banquete ficcional.
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