OS ABISMOS DA PROSA POÉTICA
Ao concluir a leitura de O guardador de abismos,
do poeta paulista Antonio Ventura, a primeira pergunta que me ocorre
é a seguinte: a que gênero literário de nosso
tempo pertenceriam esses textos? Inclino-me aqui a considerá-los
como tangenciais à categoria algo evanescente da prosa poética
ou à do poema em prosa. Em carta dirigida a Arsène
Haussaye, pergunta o autor de As flores do mal: “Qual
de nós, em seus dias de ambição, não
sonhou com o milagre de uma prosa poética musical, sem ritmo
e sem rima, bastante maleável e bastante rica de contrastes
para se adaptar aos movimentos líricos da alma, às
ondulações do devaneio, aos sobressaltos da consciência?”
Creio que foi isso, acima de tudo, o que pretendeu
Antonio Ventura em seus textos, nos quais avulta uma indisfarçada
obsessão pela fugacidade do tempo, pelos desmandos do vento,
pela intensa prática intertextual (Drummond, Pessoa, João
Cabral, García Lorca, Heráclito, Clarice Lispector,
Lygia Fagundes Telles, Cervantes) e pelo branco, essa não-cor
na qual se entrelaçam todas as cores e que, na Commedia
dantesca, dá origem àquela intolerável luz
que banha a sua metáfora do branco. Assim como ocorre nos
poemas em prosa de Baudelaire, percebe-se em O guardador de abismos
uma nítida despreocupação, seja com o ritmo,
seja com a rima, e, ao contrário, uma incessante busca por
aqueles contrastes que tentam adaptar sua prosa “aos movimentos
líricos da alma” e “às ondulações
do devaneio”.
IVAN JUNQUEIRA
da Academia Brasileira de Letras
O GUARDADOR DE POESIA
Em 2011, Antonio Ventura lançou O catador
de palavras, no qual reuniu seus sete primeiros livros. Com
O guardador de abismos, nesta agora posição
de poeta-guardador, pode-se dizer que o autor cumpre seu ofício
de forma exemplar. Porque privilegia antes de tudo a memória
para recriar a matéria de seu canto. E o faz valendo-se igualmente
da imaginação transfiguradora, tornada eficaz pelo
vigor da linguagem.
Também há de se ressaltar a capacidade
de observação dos seres e das coisas, em que as notações
sensoriais do espaço e do tempo, bem como dos elementos da
natureza, se fazem presentes. Entretanto, creio que é diante
da finitude temporal do ser que o autor se volta de forma mais incisiva
e não menos angustiada, refletindo decerto aquela “pressão
do infinito” (Bloy), tal como ocorre na perturbadora narrativa
que dá título ao volume.
Retomando o poema em versos, na parte final,
o autor homenageia vários poetas brasileiros da atualidade,
mas termina nos brindando com primorosos poemas, “Eu e o tigre”,
“Não importa” e “O círculo dourado”
(“... e dentro o animal iluminado”). O animal iluminado
não é outro senão a própria poesia,
aqui retida por este exímio guardador de abismos.
ADRIANO ESPÍNOLA
poeta e crítico literário
SOBRE O GUARDADOR DE ABISMOS
O guardador de abismos, de Antonio Ventura,
é, no seu conjunto, um comovente relato dos encontros e desencontros
de um homem com sua própria infância. As três
partes da obra são atravessadas pelo mesmo sopro lírico,
que transforma o poeta (ainda que em prosa) num ser tecido de água
e vento. Na paisagem do passado, a imaginação líquida
e gasosa de Ventura nos convida ao êxtase frente ao fluxo
intérmino do pequeno rio, nos convoca à fruição
auditiva e amorosa dos pingos da chuva no telhado, à contemplação
das nuvens, sem esquecer o presente, traduzido nas vigorosas celebrações
da amada, ou ainda o desencantado olhar ao futuro, num lamento em
surdina diante das coisas que escapam a nosso controle e desejo.
Carlos Drummond de Andrade é o grande interlocutor, quase
sempre implícito, elíptico, deste novo grande livro
de Antonio: não por acaso, a pujança da infância,
o corpo feminino e certa descrença na humanidade são
traços comuns aos dois poetas. Após o belo O catador
de palavras (2011, Topbooks), O guardador de abismos
é confirmação do talento – em verso &
prosa – de Antonio Ventura.
ANTONIO CARLOS SECCHIN
da Academia Brasileira de Letras
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