OS DIAS
Rodrigo Petronio
Uma relação circular pode ser entendida
como espinha dorsal da poesia de Weydson Barros Leal, a começar
por alguns títulos de seus livros anteriores, como Os
ritmos do fogo [1999] e Os círculos imprecisos
[1994]. Neste Os dias, o autor retoma a alta densidade de
seu trabalho e aprofunda os núcleos de sua poética
em novas chaves. Posiciona-se na região de gênese das
representações.
Se “toda imagem é um começo
que será encontrado” e existe um gênio que conhece
o nome do “mundo em seu começo”, a poesia é
uma busca dessa primeira imagem e dessa primeira palavra. A relação
vida-lembrança e morte-esquecimento se estabelece, dialeticamente,
no interior dessa poesia que toca o sublime à medida que
se arrisca junto ao chão. A memória é a chave
e, ao mesmo tempo, a cifra de acesso a cada um desses mundos mediados
pelas imagens.
Contudo, assim como a experiência não
é passível de unificação, tampouco o
mundo pode ser totalizado. Há tantos mundos reais quantos
mundos vividos houver. O poeta compõe um tecido vivo de referências
às artes visuais, à música, à literatura
e à filosofia. Presenteia o leitor com uma cartografia dessa
pluralidade de espaços vividos e de atmosferas, lembrados
ou imaginados, um mapa-mundo nascido de uma “mina da realidade”.
Essa topografia da memória por meio de
ritmos e imagens atravessa toda a obra. Os espaços percorridos
pelo poeta se mesclam aos espaços e ritmos imaginados de
Schiele, Haydn, Klimt, Musil, El Greco, Bach, Chopin, Delacroix,
Bruegel, Hopper. A lista de artistas é grande. Assim, ele
demonstra o apagamento da fronteira entre suas atividades como dramaturgo,
crítico de arte e poeta. Apagamento vital, nunca meramente
erudito. O procedimento de Weydson se baseia no que poderíamos
chamar de uma poética do intervalo. Por meio desse
recurso, no poema “As manhãs” temos uma sintaxe
de imagens semelhante à possibilitada pela técnica
da bricolagem. Pollock e Warhol se unem a Williams, Ginsberg e Ashbery
como sismógrafos de uma América em agonia, pintada
por Rauschenberg.
Estamos num mundo que está em nós,
contemos o que nos contém, asseverava Paul Valéry
em seus Cahiers. Todo poema remete a uma totalidade da qual
ele é um fragmento e que só pode enunciar em sua condição
de fragmento. A poesia chancela essa fenomenologia entre interior
e exterior. A circularidade fática dos dias em sua recorrência
se entrelaça à circularidade estrutural da própria
arte, entendida como ato de leitura-criação. O poema
“A leitora” indicia essa relação parte-todo
e ausência-presença, à medida que a presença
física da amante leva à compreensão de que
a ausência, em sua pura forma, “também é
um corpo”. A mediação da leitura igualmente
é uma meditação sobre o corpo e sobre o eros,
outro tema recorrente. A vida das representações não
pode ocorrer senão enraizada em um corpo. Como vida do corpo.
O corpo como eixo de todas as representações, como
queria Bergson.
À maneira de Wislawa Szymborska,
o andamento sinfônico dos poemas, sobretudo os mais longos,
tende a assimilar elementos da prosa a um alto teor lírico
e meditativo. Essa característica evidencia a destreza técnica
de Weydson, que capta os matizes de ritmos que se alternam às
vozes e às dramatis personae de sua poesia em caleidoscópio.
Em certo momento, o poeta menciona seus coadjuvantes, que não
dormem (“A caixa”). Como na estética relacional
de Nicolas Bourriaud, tudo é palco. Todo espaço é
espaço para a encarnação da arte que se misturou
à vida em um gesto irreversível.
Por isso também a imagem recorrente de
fluidez: nadadores, aquário, águas incessantes, relógio
das conchas (“A estátua”). Se a literatura é
um sonho dirigido, como queria Borges, a correnteza é o curso
desse sonho – completaria Bachelard. Tudo flui no curso da
memória. Tudo é lembrança. Ver é imaginar,
poderíamos parafrasear o místico Emanuel Swedenborg.
A escrita é o modo humano de realizar a negação
da morte. Todo elo busca um novo elo vital, na linguagem, na vida.
Esses elos em cadeia são a arte. A vida passa. A morte passa.
O organismo se desagrega. O retrato permanece (“Os asteroides”).
A arte transcende a morte para nos conectar ao mundo dos mortos.
No poema final, de modo circular, Weydson retorna
à origem. O silêncio místico de Flusser e Wittgenstein.
O silêncio como gênese do real. O coração
das imagens, dos ritmos e de todas as nossas representações
é o silêncio. O silêncio é o grande inquisidor
que nos coloca em movimento e nos transforma em peregrinos do mundo.
Exilados para sempre. Isolados dede a origem nos continentes da
linguagem. Essa linguagem que nos confere, simultaneamente, a capacidade
de nomear o mundo mediante a impossibilidade de tocá-lo.
Nesses termos, a poesia seria uma transgressão da linguagem.
A cada novo ser, um novo nome. A cada nova percepção,
um novo verbo. Como um jarro antigo repousa em silêncio, a
poesia contém em si os vestígios de uma peregrinação
pelos cheiros e pelas faces do mundo.
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