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O DRAMA POÉTICO

Affonso Romano de Sant'Anna

Leila Míccolis tem um percurso rico e curioso: assumindo-se como "poeta, porque em poetisa todo mundo pisa", é uma das mais emblemáticas da geração que emergiu nos anos 70, com uma poesia que supera as interdições feitas pelas vanguardas (1956-1968), pois erotizando o texto ela recupera o humor e o lirismo cotidiano do modernismo de 1922.

Aos meus olhos, ela surgiu em 1973, na Expoesia 1 (PUC-RJ) e Expoesia 2 (Paraná), evento que reuniu centenas de poetas durante os tempos da repressão. Tratava-se de enfrentar duas ditaduras: a dos formalistas e a dos militares. A partir de então, Leila foi interagindo intensivamente com as diversas manifestações poéticas em curso. Interessada em outros gêneros literários, nos recursos de comunicação televisiva, chegou a escrever novelas e roteiros, destacando-se sua participação nos textos de "Kananga do Japão", "Barriga de aluguel" e "Mandacaru". Vou lembrando isso não apenas para traçar brevemente seu perfil, mas para assinalar que, ao resolver fazer os cursos de mestrado e doutorado na UFRJ (de que resulta este livro), ela buscou não só ampliar como dar sustentação teórica à sua diversificada atividade.

Escolheu como assunto de sua pesquisa e tese um relevante poeta do século XX no Brasil – Lêdo Ivo. Autor de múltiplas faces, Lêdo é também ficcionista, cronista e ensaísta. Além de poeta por quem João Cabral tinha especial estima, é um dos principais autores de sua geração. Tendo começado cedo, foi considerado por Manuel Bandeira e outros uma revelação poética. Disso dá idéia o volume de mais de mil páginas publicado pela Topbooks, Poesia completa (2004). Só recentemente, no entanto, sua obra começou a ser reavaliada.

Quando surgiu, na década de 40, foi muito bem recebido pela crítica, mas depois ocorreu um fenômeno que pertence mais à política literária do que à literatura propriamente dita: a chamada Geração de 45, a que pertencia Lêdo Ivo, foi massacrada pelas vanguardas que buscavam se afirmar nos anos 50 e 60. Era o conhecido conflito de gerações. Assim como Lêdo e seus pares de 45 questionaram os de 22, agora os de 56 questionavam os de 45, e procuravam estratégicas alianças com os de 22 para isolarem de vez seus imediatos antecessores. Isso é o que costumo chamar também de uma questão de "territorialidade" – qualquer animal protege seu espaço soltando sons característicos, urinando ou defecando aqui e ali.

Cada vez mais me convenço de que não só a história da Geração de 45 tem que ser recontada, como recontada deve ser a história das vanguardas, e mesmo a da poesia marginal que se firmou a partir de 1973, e que teve como palco para se projetar também a Expoesia 1, 2 e 3, realizada no Rio, Nova Friburgo e Curitiba. Nesses últimos 50 ou 60 anos houve uma pulverização, uma fragmentação, ou melhor, uma dispersão poética que só pode ser analisada devidamente através de uma poética da dispersão, operação crítica que dê conta dos mecanismos que acarretaram a confusão de valores & obras.

Há quem diga que o poeta é um dramaturgo latente, e que o dramaturgo é um poeta realizado. Na poesia lírica, como afirma um dos autores preferidos de Leila, Emil Staiger, predomina o "eu" (o subjetivo), e na poesia dramática e épica o "nós" (o coletivo). Pois Lêdo Ivo ousou tomar um tema problemático na história do Brasil: a figura de Domingos Fernandes Calabar, aquele que na luta entre holandeses e portugueses preferiu ficar ao lado dos primeiros. Esse tema, como lembra a ensaísta, interessou, durante a recente ditadura brasileira, também a Chico Buarque e Ruy Guerra, na peça onde tratam do que seria o "elogio da traição".

Lêdo Ivo lança em cena algumas figuras insólitas – o Alagoano, o Escrevente, o Turista – além de vozes, sombras, e a viúva de Calabar. Parodístico cenário é esse em que há, "além do pelourinho, os seguintes elementos: casas baixas e brancas, coqueiros e mar ao longe, uma igreja, um canhão enferrujado e, mais adiante, um letreiro com as palavras Motel Califórnia". O Turista com seu olhar exterior, ingênuo; o Alagoano com seu ressentimento e a mágoa secular; e o Escrevente, duplo do poeta, vendo, anotando criticamente o espetáculo em que está inserido:

Quem vê nem sempre vê.

O melhor cego é aquele

que vê na TV.

Quem tem um olho é aquele

que não vê na TV

o que vê.

Ousadamente, o poema funde o Calabar de ontem com um guerrilheiro chamado Messias Calabar, e mítica e messianicamente o descreve cavalgando seu cavalo branco, "varando canaviais / entre dunas e riachos". Este trabalho tem a dupla virtude de nos dar a conhecer melhor uma outra face do poeta Lêdo Ivo e a face de ensaísta de Leila Míccolis.

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