FRANÇOIS GUIZOT
François Guizot nasceu em Nîmes
em 1787, numa família protestante, e teve a infância
marcada por um episódio trágico: seu pai, girondino,
morreu na guilhotina durante o período do Terror (1793-94).
Após estudar em Genebra, onde recebeu sólida formação
em história, literatura, filosofia e línguas clássicas,
casou-se em Paris com uma mulher de letras, Pauline de Meulan, que
o incentivou a abraçar a vida literária, e cedo iniciou
uma carreira intelectual que atravessaria mais de seis décadas.
Em 1812, aos 25 anos, foi nomeado professor de
história moderna na Sorbonne, e lá veio a conhecer
pessoas que, pouco mais tarde, o ajudariam a entrar para a alta
administração do Estado. Primeiro como secretário-geral
do ministério do Interior, depois do ministério da
Justiça, Guizot participou dos principais debates políticos
de seu tempo, e o ensaio Da Democracia Representativa, publicado
em 1816, o consagrou como o mais talentoso defensor da monarquia
constitucional e dos limites do governo. Membro do Conselho de Estado,
sua atuação foi fundamental para a aprovação,
nos anos seguintes, de importantes leis liberais que regularam a
atuação da imprensa e consolidaram as liberdades civis.
Para Guizot, a tarefa das novas gerações
era tornar constitucionais as liberdades conquistadas em 1789 e
conceber novas instituições liberais, idéias
que defendeu no periódico Philosophical, Political and
Literary Archives e no clássico A história
das origens do governo representativo na Europa – agora
à disposição do leitor brasileiro por iniciativa
do Liberty Fund e da Topbooks. Com a ascensão ao poder de
um governo ultraconservador, François Guizot se afastou da
arena política, mas continuou a escrever e publicar ensaios
na década de 1820, quando formula uma teoria do governo representativo
baseada em dois conceitos-chave: a soberania da razão e a
capacidade política.
Sua admiração pela monarquia constitucional
inglesa cresceu nesse período em que pesquisava as origens
do governo representativo. Dentro da perspectiva de lutar contra
o absolutismo e defender o liberalismo, Guizot buscou na história
da Revolução Inglesa o arsenal de combate à
“monarquia que não respeitava os limites da sua própria
Carta outorgada”. Como historiador, entendeu o papel de uma
certa luta de classes no processo de ascensão da burguesia;
como político, porém, freou qualquer intento de radicalização
que pudesse pôr em perigo as conquistas e a dominação
dessa mesma burguesia. Nesse sentido, além do absolutismo
também combateu a revolução, cujo espírito
considerava prejudicial aos homens, e defendeu como necessária
a conservação dos Estados.
“Existe, em qualquer sociedade, certa soma
de idéias justas”, escreve Guizot. “Esta soma
está dispersa nos indivíduos que compõem a
sociedade, e desigualmente repartida entre eles. O problema é
recolher os fragmentos dispersos e incompletos deste poder, concentrá-los
e constituí-los em governo. Em outras palavras, trata-se
de descobrir todos os elementos de poder legítimo disseminados
na sociedade e organizá-los em poder de fato, isto é,
concentrá-los, conclamando ao poder a moral e a razão
públicas”. Aquilo a que se chama representação
não é outra coisa senão o meio de chegar a
este resultado: “Não se trata de um mecanismo aritmético,
destinado a recolher e a contar as vontades individuais. É
um processo natural de extrair do seio da sociedade a razão
pública, a única que deve governar”.
Guizot identificava, na série multifacetada
dos acontecimentos políticos, tendências gerais da
sociedade européia de sua época, que apontavam no
sentido da consolidação da democracia. Integrante
do movimento cujos membros eram conhecidos como “doutrinários”
(por oposição aos “ideólogos” –
quer da revolução jacobina, quer do legitimismo monárquico),
ele estava consciente do advento de uma sociedade de massas dinâmica,
comunicativa, criadora de um novo espaço público de
dimensões inéditas: “Uma sociedade elétrica,
em que tudo se sabe, se propaga, em que milhões de homens,
de condições semelhantes e sentimentos análogos,
conhecem reciprocamente a sua sorte”, definiu.
Esta nova natureza “nervosa” da sociedade
exigiria tecnologias de governo apropriadas para substituir a imposição
unilateral de normas pelo Estado, cada vez menos capaz de acompanhar
o novo dinamismo social. Fazia-se necessário um novo tipo
de governo, apto a tratar com as massas, a governar “de dentro”,
abolindo a distinção entre público e privado,
entre Estado e sociedade. Isso equivalia a reconhecer o caráter
constitucional orgânico da sociedade civil, devendo o Estado
garantir a sua dinâmica livre, pelo reconhecimento geral dos
direitos civis. Neste sentido, Guizot opõe-se – tal
como Royer-Collard, Benjamin Constant e Auguste Comte – ao
artificialismo revolucionário, tanto do jacobinismo da Revolução
Francesa quanto do reacionarismo nostálgico e ultrapassado
dos monarquistas.
O historiador francês defendia a constituição
dos laços sociais sem que fosse necessário recorrer
à noção de contrato, e sem que se voltasse
a uma visão orgânica da sociedade de ordens –
ou seja, era preciso ultrapassar qualquer construção
voluntarista da sociedade. Daí que os doutrinários
reagissem contra o liberalismo político, contra um gouvernement
à bon marché. Pelo contrário: segundo Guizot,
o governo deveria potencializar as leis objetivas da vida social
por meio das instituições, submetendo as paixões
e os egoísmos a uma lei geral de racionalidade. O governo
transforma-se, assim, num resumo da sociedade, mas num resumo racional
da inteligência e das necessidades gerais: “É
vão na prática e absurdo como princípio pretender
reduzir o governo a um papel subordinado e quase inativo. Ele é
o chefe da sociedade; e, quando a sociedade crê que este chefe
é legítimo, é nele que se vem resumir e manifestar
a vida social”, afirma.
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