DIPLOMACIA AUTÔNOMA
O ex-deputado Afonso Arinos traduz o que é
ter posição independente
Diplomata aposentado e ex-deputado,
Afonso Arinos de Melo Franco Filho, aos 76 anos, mantém um
orgulho indisfarçável, controlado com prudente elegância,
quando fala do pai, o ex-chanceler Afonso Arinos de Melo Franco,
que comandou o Itamaraty, em 1961, durante sete meses. Esse o tempo
transcorrido entre a posse e a renúncia do presidente Jânio
Quadros. Nesse período curto de trabalho, Arinos marcou a
política externa brasileira com uma posição
irredutível contra o colonialismo, rompeu com o alinhamento
submisso aos Estados Unidos e aproximou o Brasil do bloco das nações
não-alinhadas.
“Esse
é um legado de Afonso Arinos”, observa Afonso Arinos
Filho, que acaba de lançar o livro Mirante (Topbooks),
onde resgata parte da história da “Política
Externa Independente” batizada assim, segundo ele, por San
Tiago Dantas, que durante o governo João Goulart manteve
o Ministério das Relações Exteriores nessa
linha de ação política, interrompida, no entanto,
pelo golpe militar de março de 1964.
Arinos Filho, ocupante da cadeira 17 da Academia
Brasileira de Letras, serviu nos Estados Unidos, Itália,
Bélgica, Áustria, Holanda, Suíça, Portugal,
Bolívia e Venezuela. Foi embaixador do Brasil em Caracas,
no Vaticano, em Haia e La Paz.
A experiência na Bolívia o marcou.
A miséria de um lado e os sucessivos golpes militares de
outro. Nesses momentos, o passado que invade a memória de
Arinos Filho o deixa cara a cara com a Bolívia do presente,
de Evo Morales. Ele, então, produz a interrogação
que sintetiza de forma original a “diplomacia independente”
retomada no governo Lula. Arinos Filho pergunta: “Se o petróleo
é nosso, por que o gás não é deles?”.
Carta Capital: Uma das marcas da política
externa brasileira foi dada por seu pai, Afonso Arinos, no governo
Jânio Quadros, em 1961. O que efetivamente significa isso?
Afonso Arinos: A Política Externa Independente
quem realmente a lançou no Itamaraty foi meu pai. Mas ele
não gostava do nome. O San Tiago Dantas continuou. O San
Tiago tem um livro chamado Política Externa Independente.
Eu tenho um livro chamado Diplomacia Independente, que
meu pai pretendia fazer e não fez.
CC: O que distingue uma coisa da outra?
AA: São essencialmente iguais. Mas a política
externa pressupõe, sempre, diálogo com alguém.
Pode haver, sim, uma diplomacia independente. É preciso,
por exemplo, negociar com os Estados Unidos, mas o chanceler do
Brasil não pode estar fazendo o que o embaixador americano
em Brasília ou o secretário de Estado dos Estados
Unidos acha que o embaixador brasileiro tem de fazer. Tem de haver
diálogo. As relações se dão por negociação.
O que aconteceu nas gestões de Afonso Arinos e de San Tiago
Dantas é que nunca o embaixador americano chegava à
sala do ministro e dizia o que se ia ou não fazer.
CC: Essa é a prática?
AA: Entrei muito moço para o Instituto Rio
Branco e, feito diplomata, fui designado para fazer um estágio
nas Nações Unidas. As instruções que
chegavam, com respeito à Guerra Fria, eram sempre assim:
votar com a delegação dos Estados Unidos contra a
postura da União Soviética; votar com a orientação
da França na questão da Argélia. Qualquer assunto
referente a Angola, votar com Portugal. Quase que instintivamente
comecei a ficar contra isso.
CC: Um alinhamento automático.
AA: Isso. Eu, psicologicamente, não me alinho
automaticamente com ninguém. Só com Deus. Mas por
razões bem diferentes. Meu pai não teve tempo para
consolidar o que pretendia. O Jânio (Quadros) não
chegou a completar sete meses de governo. O San Tiago teve um pouco
mais de tempo. Foi ele quem deu esse título de Política
Externa Independente.
CC: No caso do ministro Afonso Arinos,
quais decisões marcam a política externa na gestão
dele?
AA: Uma delas ocorreu quando o embaixador Adolf
Berle veio ao Brasil, e meu pai era chanceler. Veio fagueiro, querendo
o endosso para invadir Cuba. Era isso o que queria. Meu pai foi
cordial com ele, mas não abriu a hipótese para ele
pedir isso ao longo da conversa. Outro episódio marcante
ocorreu em relação a Portugal. O Jânio tinha
aquelas posições todas anticolonialistas, mas era
muito sujeito a pressões emotivas. Nesse sentido, sofria
muita pressão do então presidente português
Américo Tomás. Jânio fazia o Itamaraty recuar
e se abster em vez de condenar e votar contra o colonialismo. Quem
pagou por isso foi o meu amigo Antônio Houaiss, que era representante
do Brasil na Comissão de Territórios Não Autônomos
da ONU.
CC: Por que ele?
AA: Houaiss, que fez um discurso, usou uma palavra,
ao votar na questão de Angola. Disse que tinha orgulho de
votar contra a política colonialista portuguesa. Os militares
nunca esqueceram isso. Como não tiveram peito de cassar o
San Tiago, o Evandro ou o Afonso Arinos, cassaram o Houaiss. O embaixador
de Portugal foi cobrar aos militares, depois de 1964, a cabeça
do Antônio Houaiss. E deram para ele.
CC: Os militares acabaram com essa diplomacia
independente.
AA: Claro. O Juracy (Magalhães)
disse aquela frase imortal: “O que é bom para os Estados
Unidos é bom para o Brasil”. O Vasco Leitão
da Cunha tirou uma foto com chapéu de texano, aquele chapéu
de caubói. Isso foi no governo Castelo Branco. Curioso, porque
ele foi o mais moderado dos generais-presidentes e, no entanto,
na política externa o mais submisso. Isso eu não posso
deixar de atribuir à influência do Roberto Campos,
o ministro civil mais forte que o Castelo tinha. Eu vou contar uma
coisa. Fui, depois, ministro em Washington e tive dois embaixadores
excepcionais: Mozart Gurgel Valente e João Augusto de Araújo
Castro. Nenhum dos dois jamais usou a palavra “revolução”
quando se referiam ao regime militar.
CC: Mas a inflexão conservadora
dos militares, na política externa, não acabou no
governo Sarney nem no governo Fernando Henrique.
AA: Com Sarney, o alinhamento foi menor. Repare
que ele começou a abrir uma política para a África.
Digamos que com Fernando Henrique houve uma política cautelosa.
Não foi uma política externa submissa, mas não
posso dizer que foi altiva.
CC: E as ações do governo
Lula configuram uma diplomacia independente?
AA: Eu acho que sim. Sem dúvida. Nesse meu
livro, eu digo isso. O presidente Lula fez um discurso dando a diretriz
da política externa, um pouco antes ou um pouco depois da
posse, e eu escrevi que, se ela fosse seguida, a política
externa seria subscrita, sem pestanejar, pelos chanceleres Afonso
Arinos e San Tiago Dantas.
CC: Certas decisões do Itamaraty
têm provocado reações furiosas.
AA: Era de se esperar. Como provocou há
46 anos. As reações foram piores, não é?
Meu pai era um perigoso agente de Moscou. O San Tiago, também.
O pessoal que era contra, naquela época, não está
a favor hoje. São os mesmos meios sociais. São os
mesmos interesses econômico-financeiros. São os mesmos.
CC: E há um núcleo no Itamaraty
também contra.
AA: A situação é um pouco
melhor. Naquela época, os velhos embaixadores simplesmente
não compreendiam. Hoje há ainda os conservadores.
Eu os compreendo. O Itamaraty não é um lugar onde
todo mundo pensa da mesma maneira. É uma casa muito liberal
e de muita qualidade profissional.
CC: A Política Externa Independente
exige uma dose de antiamericanismo?
AA: Não. O embaixador brasileiro em Washington
é pago para manter boas relações com os Estados
Unidos. Ele não é pago para ser antiamericano. O que
qualquer um de nós pode ter são as maiores reservas
contra o governo Bush, o que também se aplica, por exemplo,
a Israel. Eu nunca fui anti-semita, mas não posso concordar
com o que este governo de Israel está fazendo com os árabes
e com os palestinos. Bush agora está de olho no Irã.
Na verdade, e sobretudo, de olho no petróleo. Ele não
diz nada contra a Arábia, porque controla o petróleo
da Arábia. E por que reage contra a Venezuela? Por causa
do petróleo. Se não houvesse petróleo, não
se incomodaria com Chávez.
CC: Há um conteúdo antiamericanista
na política externa do governo Lula?
AA: Não. Há uma preocupação,
que acho extremamente saudável, de não parecer submisso.
E isso é muito diferente de ser antiamericano. No próprio
caso da Bolívia, não há submissão a
Evo Morales. O que há é a compreensão com a
imensa pobreza do lado de lá. Por que o petróleo é
nosso e o gás não é deles?
CC: O esforço do Brasil para conseguir
uma cadeira permanente é um erro?
AA: De jeito nenhum. O Brasil entrou e saiu da
Liga das Nações com o meu avô, Afrânio
de Melo Franco, como representante. Saímos de lá porque
o Brasil não foi aceito como membro permanente do Conselho.
Essa é a mesma questão de hoje. A grande resistência
contra nós é do México e da Argentina. O Brasil
de língua portuguesa nunca terá apoio para representar
esses países de língua espanhola como membro permanente
do Conselho da ONU. Toda a nossa força está na possibilidade
de representarmos a América Latina. Isso eles não
aceitam.
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