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DESTINOS DA FICÇÃO

Letícia Malard

Numa resenha de pouco espaço, sobre 846 páginas de texto denso e marcado pela erudição indispensável a tal tipo de trabalho acadêmico, conseguir selecionar o essencial da obra é "Missão Impossível". Poderíamos sair pela tangente, preferindo discorrer sobre o “estilo” ensaístico do pesquisador, sobre sua abertura para autotransformações teórico-analíticas que tanto incomodam os que ainda acreditam que o sol gira em torno da terra. Mas não vamos cair nessas armadilhas, na imitatio daquele examinador que, em não tendo nada a dizer numa banca de tese de Direito, resolveu recorrigir o Português que havíamos corrigido. Embarquemos, portanto, na Missão, destacando o que nos parece importante dizer antes dos 5 segundos em que a gravação se autodestruirá.

Controlar, particularizadamente, os produtos da ativação do imaginário é o eixo temático da pesquisa de Costa Lima publicada em três livros (1984, 1986 e 1988). Esse controle particularizado, enquanto instância específica do Poder, agencia desdobramentos, entre os quais destacamos: vetar a ficcionalidade, praticar a imitatio como princípio político, convocar o religioso e o mágico para fazer funcionar o mecanismo controlatório; enfim, aproximar ou distanciar a Literatura da História.

Em última instância, Costa Lima busca compreender historicamente a articulação e a contaminação entre estes dois saberes ou formas discursivas, e ensaiar teorizações sobre eles. Se interpretamos corretamente: A Literatura – como prática da Subjetividade e da Liberdade, em sua fuga, através dos tempos, de um eterno controle; a História / a Enciclopédia – como exercício iluminista da Verdade e da Razão, o que vale dizer, do Poder, perseguindo a Literatura para domesticá-la sob seu tacão “censorial”. É claro que não se trabalha aqui, nem no livro de Costa Lima, com juízos de valor sobre a controlada e a controladora.

Em 2007, os três volumes foram reunidos em um único, feitas revisões e reformulações, que – acreditamos – não comprometem as hipóteses, teses e demonstrações anteriormente publicadas. Obra de grande fôlego, terceira edição em 2008, a pesquisa sobre o controle do imaginário abrange a apresentação e a discussão de diferentes teorizações, períodos e escritores exemplares do Ocidente. O pesquisador transita da Idade Média à contemporaneidade, revelando ao leitor e analisando, em situações textuais concretas, as práticas e instrumentos controladores – seus desdobramentos e conseqüências.

Entre outros assuntos, na Trilogia do Controle se faz presente a originalidade do cronista português Fernão Lopes, oscilante entre a verdade/o poder e a subjetividade. Analisa-se a expressão da imitatio, do decoro e da verossimilhança nas poéticas do Cinquecento. Demonstra-se a contribuição de Diderot para o Controle – não o obscurantista e religioso, que era banal e dominante, mas o iluminista e laico, que era burguês e pragmático – da Arte, em especial do Teatro. Estuda-se como a questão dos controladores “religião” e “política” no estatuto colonial e no da Independência, respectivamente, da América Hispânica, se prolonga na longa historicidade de Nuestra América. No Romantismo, assiste-se à substituição da imitatio pela retomada da subjetividade, comprovada sobretudo em Chateaubriand, Stendhal e na historiografia literarizante de Michelet.

Voltando-se para casos pontuais latino-americanos, o ensaísta descobre, sobretudo em Esaú e Jacó, como Machado de Assis impõe uma reviravolta nas relações entre Ficção e História, sem submeter a primeira à segunda. O controlador e o controlado Borges, apropriador da tradição estética da gnose e do mítico-fantástico, nessa perspectiva é estudado com a sofisticação teórica peculiar ao crítico literário. Ele encerra essa monumental pesquisa mas não a conclui: em entrevistas, o autor tem dito que está mergulhado na leitura da Antigüidade Clássica, visando a captar a gênese do controle do imaginário, o qual começou a descobrir nos tratados de poética renascentista.

Selecionemos alguns pontos para comentários antes que se detone a mencionada gravação. As reflexões de Costa Lima começam, no primeiro volume, com o historiador Fernão Lopes, em cujo conceito de verdade implica a questão da subjetividade – diferenciação discursiva que a Idade Média não conheceu, diz ele. Nesta, não há diferença entre história e ficção: elas são verdadeiras e confiáveis, caso não se oponham aos dogmas da religião, afirma o ensaísta. Se, em Fernão Lopes, por um lado o lugar da razão é o posto solar, por outro lado o posto da opinião é móvel, é o da subjetividade. No volume seguinte, aprofunda-se a questão do subjetivo, revela-se como há uma hierarquia discursiva de verdade e ficção naquele cronista português que antecipa o historiador do futuro. Lopes estampa um antagonismo entre História e Ficção. A História é neutra, é a verdade do passado, e a subjetividade de quem a narra não pode interferir no narrado.

Sobre a dupla História-Ficção, “Ficção” aqui entendida como “hermenêutica subjetiva do acontecimento”, tal como vemos a de Lopes, relativa à função do povo no famoso Cerco de Lisboa, exemplificando, nossa concordância com Luiz Costa Lima é integral. Porém, com relação às duplas história-romance de cavalaria/vidas de santos e história-poesia/canção, nos parece haver uma diferenciação discursiva conhecida na Idade Média. No caso da história-poesia/canção, por exemplo, parece não ter havido controle do imaginário (resta saber por quê), pelo menos na Península Ibérica: as cantigas de amor/de amigo, cantadas na Corte, sancionavam o adultério imaginário; e as de escárnio e mal-dizer, cantadas nas tavernas e casas de prostituição, eminentemente pornográficas, até hoje fazem corar os espectadores dos sexy-time. Fica a questão para Costa Lima, por mais ingênua que, à primeira vista, possa parecer: em algum espaço/tempo da Idade Média, as produções do imaginário, qualquer que fosse a classe social, não foram controladas.

Seguindo-se a cronologia da obra, a questão da subjetividade é retomada no Romantismo, com Chateaubriand e Stendhal, articulando-se aí a Natureza e a História. Entra em cena Michelet, refletido na historiografia contemporânea, com Certeau e White, por exemplo. A presença do aleatório nos rumos da História, a importância do seletivo, do belo e do cativante no discurso histórico, esse viés “anarquista”, como o chamou White, desembocam na tentativa de aproximar os discursos histórico e literário.

Aqui nos parece haver uma questão crucial nas relações entre os discursos da História e da Literatura, pelo menos a partir da escola dos Annales, para não recuarmos a Michelet. Julgamos que seus historiadores de alguma forma confundem “imaginário-ficcional” com “retórico-estilístico” (com perdão desta palavra), ou seja: ao cobrarem a “literariedade” da História, a bem da verdade estão cobrando o bem-escrever, tipificando-o como escrita bela, clara, agradável de ler, etc. Isso é perfeitamente possível, sem que se interfira na “veracidade”, na “idoneidade” do discurso enquanto documento.

Concluindo, é importante dizer que A trilogia do controle não é mais um livro apenas para especialistas ou iniciados em Literatura, como pode parecer à primeira vista. É um texto seriíssimo, que pode interessar a todos aqueles que se integram no campo cultural amplo e erudito das Ciências Humanas.

Letícia Malard e Professora Emérita da Universidade Federal de Minas Gerais. Seus últimos livros são: No Vasto Mundo de Drummond (2004), Um Amor Literário (2004) e Literatura e Dissidência Política (2005)

jornal ESTADO DE MINAS
Belo Horizonte
15/03/2008

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