A VIDA NA BELLE ÉPOQUE CARIOCA
A arte marca presença no Palácio
das Laranjeiras, por onde passaram de líderes da política
mundial a cantores da bossa nova
Maria Ignez Barbosa
Neste palácio carioca bem século 19, onde estilos
se misturam, do Luís XIV ao rococó e do Império
ao art nouveau, inspirado no Cassino de Mônaco de Charles
Garnier (o arquiteto da Ópera de Paris), muito de nossa história
republicana foi vivida, escrita e desenhada. Hoje, o Palácio
das Laranjeiras é um bem tombado pelo Patrimônio Histórico
do Estado do Rio de Janeiro.
Suas
fachadas, salões e varandas, com vitrais coloridos de Charles
Champigneulle, frisos de mármore com desenhos de bronze,
pisos de mosaico com arabescos, lambris marchetados, colunas de
mármore rosa da Holanda, candelabros de ferro fundido, guarda-corpos
de ferro forjado, estátuas de Emile Guillaume, medalheiros
(cômodas altas e menos profundas) de André Charles
Boulle, o ebanista de Luís XIV, e uma cópia da escrivaninha
que foi de Luís XV em Versalhes, nos transportam à
belle époque e a um clima típico fin de siècle.
Ali, entre paredes e tetos com afrescos de Georges
Picard, pinturas de Frans Post e Nicolas-Antoine Taunay, um retrato
de Luís XIV feito por Hyacinthe Rigaud e outro do Conde de
Londres por Joshua Reynolds, dormiram e foram velados presidentes
da República, hospedaram-se autoridades estrangeiras, assuntos
de Estado foram discutidos e também muito se jantou e se
dançou.
Foi no Laranjeiras que o vice-presidente Café
Filho se refugiou quando Vargas se matou; e onde Juscelino morou
enquanto Brasília era construída. Já João
Goulart instalou por lá um consultório odontológico
e viveu a angústia de seus últimos dias antes do golpe
militar. Na sala Regência, Costa e Silva anunciou, em 1968,
o AI-5, de triste memória, e, um ano depois, no mesmo lugar,
teve seu corpo velado. Já Leonel Brizola – que no palácio
recebeu índios xavantes encantados com o que viam –
reclamava dos bois representados nas pinturas murais por não
se parecerem com os de sua fazenda no Uruguai.
Mistura de gêneros. O palácio foi
construído nas primeiras décadas do século
20 pelo empresário Eduardo Guinle ao sopé de uma colina
que desliza em direção ao mar, em terras que, em 1808,
Carlota Joaquina comprou e não pagou – em meados do
século 19, elas pertenceram à Inglaterra, mais tarde
ao Conde Sebastião do Pinho e, finalmente, no início
do século 20, passaram às mãos de Eduardo Palassin
Guinle. Os Guinles, de origem e hábitos franceses e que se
afirmaram no Rio como grandes empresários, iniciaram fortuna
vendendo artigos europeus na Rua da Quitanda – onde tinham
a loja Aux Tuileries.
Eduardo Guinle, que da Europa onde estudou voltou
cheio de ideias inovadoras, convocou para a obra o arquiteto Armando
da Silva Telles. Este, apesar de misturar gêneros e épocas,
com uma planta bastante funcional, soube dar uma atitude modernista
ao imóvel de dois andares e três corpos: central, residencial
e de serviço. Ele não dispensou as clássicas
escadarias ladeadas por gigantescos leões de mármore
e as diferentes fachadas que "olham" para a uma bela vista.
Mesmo assim, tratou de adicionar à propriedade um lindo elevador
– o primeiro da América Latina –, geradores,
estufa e um recinto para preservação de mantimentos.
Eduardo casara-se em 1905 com Bianca de Paula
Ribeiro, que, depois da morte do marido, em 1942, seguiu, com alguns
de seus filhos, vivendo no palácio até 1946, quando
o presidente Dutra o adquiriu para a Nação por 27,5
milhões de cruzeiros (moeda criada um ano antes).
Como o governo já tinha o Palácio
do Catete, o Laranjeiras, com seus telhados decorados com quimeras
e águias de bronze em cada esquina, jardins com fontes e
estátuas imortalizando deuses mitológicos, foi destinado
à hospedagem de autoridades estrangeiras. O presidente do
Chile, Gabriel González Videla, em 1947, foi o primeiro visitante
oficial recebido no ainda chamado Palácio Guinle. Além
de cumprir os rituais de praxe, como oferecer um jantar ao presidente
brasileiro, recebeu para um baile a sociedade local. De acordo com
os jornais da época, as mulheres não economizaram
nos brilhantes, rendas e veludos, mas dias depois foi preciso o
Itamaraty publicar um apelo "às pessoas que, por engano,
levaram peles e manteaux trocados, no sentido de que sejam devolvidos
às proprietárias". A mesma nota advertia que
ninguém tentasse usar ou vender os agasalhos desaparecidos,
pois a polícia e as lojas especializadas já haviam
sido notificadas.
Atrás de orquídeas. Harry Truman,
o presidente dos Estados Unidos que veio ao Brasil difundir sua
doutrina contra o avanço do comunismo, foi a segunda autoridade
estrangeira a dormir no palácio. Em foto do acervo da Biblioteca
Truman nos Estados Unidos, ele ali aparece, ao lado de Dutra, sob
o retrato de Luís XIV – o símbolo do absolutismo
francês. Faz parte do anedotário que, encantado com
nossas orquídeas, ele resolveu subir atrás delas a
encosta do Corcovado, sendo detido por guardas florestais que não
o reconheceram.
Nos anos dourados, JK recebe a atriz Kim Novak
no Palácio das Laranjeiras (reprodução
do livro)
Meses depois, chegaria o governador geral do
Canadá, um marechal inglês. Em 1953, foi a vez do ditador
do Peru, Manuel Arturo Odría, conhecido como o "Perón
dos Andes", que depois surpreenderia a todos ao convocar eleições
em seu país. Devido a uma greve de garçons, a festa
que ele ofereceu a Getúlio Vargas não teria se realizado
sem o socorro dos taifeiros e cozinheiros da Marinha. Anastasio
Somoza, da Nicarágua; Camille Chamoun, do Líbano;
Craveiro Lopes, de Portugal; Charles de Gaulle, da França,
e o Papa João Paulo II estão entre os muitos outros
que ali foram recebidos.
Anos de fato dourados no palácio foram
os de JK. Nos inícios da bossa nova, Benê Nunes, Nat
King Cole, Louis Armstrong, The Platters, Pixinguinha e Ataulfo
Alves tocaram, cantaram e se encantaram com o piano de cauda Steinway,
pintado por Aristide Cavaillé que tem pés de talha
dourada e fica no centro do salão de música. Kim Novak,
Marlene Dietrich, David Niven, Fidel Castro, apesar da suntuosidade
do décor, ali também se sentiram à vontade.
Durante o regime militar, o Laranjeiras foi a
residência oficial dos presidentes brasileiros no Rio de Janeiro,
até que Ernesto Geisel, ao fundir os Estados do Rio de Janeiro
e da Guanabara, decidiu transformar o local em residência
oficial do governador. Nessa qualidade, o primeiro morador foi o
indiretamente eleito Almirante Faria Lima. Chagas Freitas, Moreira
Franco, os Garotinhos e Benedita também viveram neste mesmo
endereço. Outros governadores, como Marcelo Alencar e, atualmente,
Sérgio Cabral, preferindo seguir em suas casas próprias,
mantiveram o palácio à disposição do
presidente da República.
Estas e outras histórias estão
no belo livro Palácio das Laranjeiras, editado pela Topbooks
(247 págs., R$ 119), com fotos de Pedro Oswaldo Cruz e textos
de Beatriz Coelho Silva e Christine Ajuz, por encomenda do governador
Sérgio Cabral, que, no prefácio, além de fazer
justiça ao rigoroso trabalho de restauração
realizado por dona Zoé Chagas Freitas em 1980, promete que,
durante sua gestão, o palácio será "palco
somente de eventos que, de fato, honrem a liberdade e os valores
democráticos". ( www.mariaignezbarbosa.com
).
O ESTADO DE S.PAULO
04/04/2010
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A
República art déco
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