HUMANISMO MUITO ALÉM DA RELIGIÃO
Daniel Piza
Em meados do século 17 a Europa viveu uma transformação
que seria fundamental para quase tudo que se passou no mundo desde
então. Na expressão do historiador inglês Hugh
Trevor-Roper (1914-2003), ela virou "de cabeça para
baixo" em termos políticos, econômicos e intelectuais.
Ou melhor, sua cabeça virou para o norte: países como
Inglaterra e Holanda passaram a ser as potências do continente;
Itália e Espanha entraram em decadência. O poder, em
outras palavras, se deslocou das regiões católicas
– que incluíam ainda Flandres e o sul da Alemanha –
para as protestantes, como também Suíça e a
França dos huguenotes, comandada por banqueiros e industriais
calvinistas. O capitalismo tal como o conhecemos nasceu –
e com ele as diferenças de ritmo e mentalidade que marcariam
o jogo das nações nos séculos seguintes.
Em seu fascinante volume de ensaios sobre o tema,
A Crise do Século XVII – Religião, a Reforma
e Mudança Social, enfim publicado no Brasil (editora
Topbooks), Trevor-Roper tenta entender o que se passou no intervalo
que vai do fim do Renascimento, que data de 1620, até o surgimento
do Iluminismo, ao redor de 1660. Um movimento, de certo modo, era
continuidade do outro, mas sofreu um deslocamento geográfico
tão rápido quanto evidente. Segundo a conhecida tese
do sociólogo alemão Max Weber, essa mudança
se deu por uma razão ética: a moral protestante estava
mais predisposta ao espírito capitalista, por infundir no
indivíduo mais autonomia intelectual e menos aversão
ao lucro. Trevor-Roper está de acordo, mas tenta acrescentar
nuances importantes à visão. Para ele, a religião
foi um dos fatores, não o único.
O primeiro e melhor ensaio do livro, que está
no subtítulo do volume (originalmente publicado em 1967 pelo
Liberty Fund), é eloqüente ao mostrar que os países
católicos no início daquele século estavam,
por assim dizer, preparados para dar o salto capitalista, para converter
seu mundo comercial e financista em uma economia baseada na indústria,
em novas escalas de produção. Havia condições
materiais e culturais para tanto. Mas uma série de acontecimentos
mudou o panorama. Nos países protestantes, empreendedores
calvinistas formavam "a elite econômica da Europa";
nos católicos, existia um hiato entre a Igreja e as forças
produtivas. Só que a diferença não se deve
apenas à mentalidade calvinista.
Um dos acontecimentos centrais foi a expansão
do poder da Espanha, responsável maior pela Contra-Reforma,
pela aproximação entre Estado e Igreja que se intensificou
com as novas concorrências. Diferentemente da Itália,
em especial de cidades mercantis como Veneza, a Espanha tinha sua
riqueza apoiada em uma sociedade ainda feudal e burocrática
que havia sido "acidentalmente alçada ao poder mundial
pela prata da América". Como tal, essa riqueza da monarquia
espanhola era mais aparente do que duradoura, porque fora de sintonia
com os novos tempos. O seu era um capitalismo de Estado, centralizador
e opressor, menos tolerante com heresias, dominado por príncipes
personalistas. Ou seja: não foi apenas o protestantismo que
abriu espaço para o capitalismo, mas também o catolicismo
que fechou as portas para ele.
Outros fatos se passaram no campo das idéias.
Não por causa da moral protestante e sim porque tolerada
por ela, a filosofia iluminista começou a vicejar nos países
do norte europeu. Pensadores do protestantismo francês (huguenotes),
como Languet e Duplessis-Mornay, formulavam a nova ciência
política, pós-Maquiavel. Na Holanda o conceito de
Direito Natural era forjado por Grotius e outros intelectuais. Na
Inglaterra de Cromwell, apesar do messianismo de seu líder,
o ensaísmo de Francis Bacon lançava as bases da ciência
moderna, empírica, e Thomas Hobbes propunha a submissão
do poder religioso ao político. Na terra de Calvino, a Suíça,
assim como na Escócia, as universidades fomentavam o pensamento
laico de Montesquieu, David Hume, Adam Smith e Voltaire, influenciando
cabeças como as do grande historiador Edward Gibbon e a do
fundador americano Thomas Jefferson.
Qual era então a conexão entre
calvinismo e Iluminismo? Era moral, social ou teológica?
Para responder a essa pergunta, Trevor-Roper, no quarto ensaio,
"As origens religiosas do Iluminismo", vai primeiro às
raízes do movimento no final da Renascença. E lá
encontra, em destaque, o pensamento de Erasmo de Roterdã
(1466-1536), representante mais completo de uma era liberal, pacífica
e cosmopolita, anterior às guerras religiosas da primeira
metade do século 17. Era uma época em que se acreditava
numa Igreja unida, consensual, em que correntes como os arminianos
(seguidores de Armínio, que dizia que a fé depende
da vontade individual) e os socinianos (seguidores de Socino, que
não acreditava em pecado original) discordavam de Calvino
e não eram perseguidas por isso. Trevor-Roper resume: "Podemos
dizer que as diferentes sociedades calvinistas da Europa contribuíram
para o Iluminismo apenas na medida em que se afastaram do calvinismo".
O Iluminismo teve, sim, bases religiosas, mas
delas se distanciaria cada vez mais. O calvinismo mudou o paradigma
ético ao romper com o antiindividualismo católico,
mas foram movimentos dissidentes do calvinismo que abriram caminho
para a afirmação da razão crítica e
do livre-arbítrio. Weber estava certo em seu diagnóstico
a respeito da nova ética, mas não em associá-la
com tanta ênfase ao calvinismo. O humanismo de outro herdeiro
de Erasmo, Montaigne, na virada para o século 17, era também
produto dessa reação ao puritanismo religioso. Sem
as "heresias" ao próprio protestantismo, sem o
pensamento laico ou laicizante de todos esses inimigos de utopias
e ideologias, o novo mundo capitalista não teria irrompido
com a mesma força.
Historiador controverso por ter escrito sobre
assuntos tão díspares quanto o império chinês
e os últimos dias de Hitler (cujos diários falsos
declarou autênticos, no maior revés de sua carreira)
e por nunca ter escrito uma grande obra como a de muitos dos colegas
dos quais discordou (A. J. P. Taylor, Christopher Hill, Lawrence
Stone, Arnold Toynbee), Trevor-Roper deixou nesses poucos ensaios
uma abertura para uma releitura histórica urgente, capaz
de vencer a dicotomia entre materialismo marxista e culturalismo
weberiano. Para os brasileiros, seu livro tem ainda o valor involuntário
de relembrar que a formação nacional se deu sob a
matriz de uma cultura contra-reformista já muito defasada,
pouco afeita à ciência e à iniciativa privada.
Caderno 2
O ESTADO DE S.PAULO
04/11/2007
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historiador inquieto
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