O BRASIL ENTREVISTADO
ELIAS THOMÉ SALIBA*
Reedição de ‘A História
Vivida’ ajuda a ver como o País era e como poderia
ter sido
Variedade. No mosaico de vozes, a do escritor Pedro
Nava
Baudelaire comparava a memória a um palimpsesto
– aquele pergaminho no qual se apagavam textos antigos e por
cima se escreviam textos novos: você se lembra da última
vez que recordou um evento e, sem perceber, muda a história
a cada recordação posterior. O maior prêmio
que ganhamos dessa autêntica reverberação da
memória é o privilégio de conhecermos a história
sabendo sempre o que veio depois – o prêmio do post
factum, ou, como traduzia o ferino Machado de Assis, “depois
do gato morto”. Como se estivéssemos numa encruzilhada
brasileira de muitas direções, nossa memória
também reverbera ao relermos, três décadas depois,
a oportuna reedição de A História Vivida
(Topbooks, 1.462 págs.), agora com a totalidade das 57 entrevistas
(seis a mais do que na primeira versão) reunidas e organizadas
por Lourenço Dantas Mota.
Realizadas entre 1977 e 1983, com intelectuais,
políticos, militares, artistas, empresários e profissionais
de diversas áreas, compõem um dos mais completos conjuntos
de entrevistas do passado brasileiro. Sem nenhum filtro ideológico
prévio, a seleção de personagens impressiona
pela abrangência e pela variedade: políticos, como
Tancredo Neves, Miguel Arraes, Afonso Arinos ou Fernando Henrique
Cardoso; militares que transitaram pela política, como Cordeiro
de Farias ou o Marechal Lott; escritores, como Jorge Amado, Tristão
de Athayde ou Vinícius de Moraes; historiadores, como Caio
Prado Jr. ou José Honório Rodrigues; professores,
como Pierre Mombeig e Ruy Coelho; e, enfim, gente das mais diversas
áreas, como Gilberto Freyre, Darcy Ribeiro ou Oscar Niemeyer.
Cobrindo quase três gerações,
os entrevistados revisitam episódios que compreendem o período
que vai dos anos 1920 até as décadas imediatamente
posteriores ao golpe militar de 1964. Juntando essa época
com os anos nos quais efetivamente ocorrem as lembranças,
o resultado é um riquíssimo mosaico de vozes que reverberam
por toda a história brasileira do século 20. Embora
muito do que se pensava a respeito do País e do seu futuro
já estivesse presente nas obras de alguns clássicos
do pensamento brasileiro ali entrevistados, como Caio Prado Jr.,
Gilberto Freyre ou Celso Furtado, é sempre auspicioso surpreendê-los
mais à vontade, usando chinelo e narrando suas trajetórias
fami-liares e profissionais.
Cada um deixa um diagnóstico muito particular e convincente
a respeito do País. “Não vejo o Brasil em nenhuma
linha suicida. O brasileiro viveu numa sociedade tão rígida
que acabou por desenvolver um gênio da sobrevivência
e uma inventividade à flor da pele que certamente marcará
nosso futuro”, diagnostica o percuciente Celso Furtado. Ou
o bom humor da boutade através da qual o incrível
professor Ruy Coelho encerrava o assunto: “Meu maior medo
é que o Brasil tenha um grande futuro atrás de si”.
Naturalmente, em grau bem menor do que as respostas
discretas, desponta, em algumas entrevistas, um tom levemente confessional.
Pois, afinal, quem negaria que o ronrom desafinado de algumas anedotas
não faça parte da desarmônica sinfonia das histórias
de vida? É o caso da pitoresca entrevista com o jurista Pontes
de Miranda, o qual, ao lado de assuntos sérios de direito
constitucional, conta o curioso caso da origem do uísque
President (um blend especial criado em homenagem a Júlio
Prestes, que ganhou seu mandato apenas no rótulo escocês!),
além de seus longos encontros com Albert Einstein, encerrando
a entrevista intempestivamente porque era hora de assistir a sua
novela preferida.
Nelson Rodrigues também recorda as agruras
da infância e da mocidade: o assassinato do irmão que
ele presenciou ainda jovem; o tratamento de sua tuberculose como
indigente num sanatório, e a confissão, surpreendente,
de que sempre desejou escrever teatro cômico e não
tragédias. “Neste país, o sujeito que faz rir
é um benfeitor. E se não temos um vampiro –
estejam certos – é a piada que torna inviável
qualquer Drácula brasileiro”, confessou Nelson.
Pertencentes à geração imediatamente
posterior aos intérpretes clássicos da ciência
social brasileira, muitos entrevistados têm pelo menos um
ponto em comum: após 1964, todos eles viveram – aqui
ou no exílio – duas décadas nas quais proliferou
um difuso ambiente intelectual de suspeita, ou pelo menos de desconfiança
e de censura velada sobre como pensar o dilema brasileiro –
o que, no fundo, quase obrigou – todos – a um extremo
rigor nas análises e a um cuidado maior ao pensar nos diagnósticos
e soluções.
Até que ponto prevaleceu entre nós
a prática de uma política social remediadora, centrada
na gestão burocrática da pobreza como pilar básico
das políticas sociais? A essa pergunta candente, que reverbera
na memória social brasileira, o denso painel de pensadores
pode não oferecer respostas, mas é suficiente para
o leitor compreender não apenas como era o Brasil, mas também
muito daquilo que ele não foi e poderia ter sido. Esse, sim,
é o maior prêmio à superação do
nosso esquecimento coletivo. Aliás, algo facilmente perceptível
para um dos mais argutos entrevistados, Pedro Nava – o mais
memorialista dos escritores brasileiros – ao concluir: “Quando
vamos pescar alguma coisa nesse oceano sem fundo que é a
memória, o anzol já vai molhado do presente”.
*Elias Thomé Saliba é
professor da USP e membro da Associação Internacional
de Historiadores do Humor. Autor, entre outros livros, de “Raízes
do Riso” (Companhia das Letras)
Caderno “Aliás”
O ESTADO DE SÃO PAULO
25/10/2014
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