MEMÓRIAS DO DIPLOMATA GEORGE KENNAN MOSTRAM OS BASTIDORES
DA GUERRA FRIA
Luciano Trigo
“Este não é apenas um excelente
livro de memórias, mas o ensaio político mais valioso
escrito por um americano no século 20”. Assim se referiu
o historiador John Lukács, em resenha publicada na revista
“The New Republic”, às memórias do diplomata
e estrate-gista George Kennan, durante décadas testemunha
engajada e discreto protagonista da conturbada geopolítica
internacional do século 20. Dividida em dois volumes, a obra
valeu ao autor o Prêmio Pulitzer e está sendo lançada
no Brasil pela editora Topbooks.
O primeiro volume trata do período 1925-1950,
quando os Estados Unidos redefini-ram seu papel no mundo, e o próprio
Kennan se consolidou como figura de relevo e formulador de políticas.
Combinando reminiscências altamente pessoais com uma análise
original das causas e desdobramentos de variadas crises, a narrativa
atravessa os impasses diplomáticos dos anos 30, o início
e o fim da Segunda Guerra e os primeiros anos da Guerra Fria. Com
um estilo sempre elegante – ainda que, em alguns momentos,
temperado pela vaidade – pode-se dizer que George Kennan escreve
História na primei-ra pessoa.
Sua carreira começou em 1925, quando,
recém-formado em Princeton, foi enviado para Berlim e em
seguida Riga, na Letônia. Fluente em russo, em 1933 foi nomeado
para a embaixada americana em Moscou. Nos anos seguintes, ocupando
postos-chave em Praga e, novamente, Berlim – onde permaneceu
até 1941, quando os Estados Unidos declararam guerra à
Alemanha – Kennan viu de perto as consequências trágicas
de uma diplomacia desastrada e de conflitos mal administrados. Basta
lembrar que ele acompa-nhou de um ponto de vista privilegiado tanto
a ascensão do nacional-socialismo na A-lemanha de Weimar
quanto o processo de coletivização e os expurgos stalinistas.
Depois de uma breve temporada em solo americano,
Kennan voltou a Moscou já em 1944 – e se deu conta
de que os Estados Unidos e a União Soviética, esta
sob o tacão de Stálin, desenhavam objetivos estratégicos
inconciliáveis para o pós-guerra. Num cenário
de crescente polarização, ele passou então
a advogar o distanciamento calculado entre Washington e Moscou,
fixando, no chamado “longo telegrama” enviado ao Depar-tamento
de Estado, os fundamentos políticos, econômicos e militares
de uma estratégia de contenção.
As teses do longo telegrama foram refinadas e
radicalizadas em um texto sobre “as origens da conduta soviética”,
publicado em 1947 na revista “Foreign Affairs” e assina-do
apenas com um ”X”. O “Artigo X” funcionaria
como verdadeiro guia da política externa americana durante
décadas, com desdobramentos que se estendem até hoje.
Ba-sicamente, Kennan afirmava que os Estados Unidos deveriam frear
a difusão mundial do comunismo por meio da ideologia e da
política, e não da guerra. No mesmo texto, ele previu
o colapso do comunismo soviético, que só ocorreria
em 1989: Kennan acreditava, com razão, que a ameaça
representada pela União Soviética era mais ideológica
que militar, e que as contradições internas acabariam
levando o comunismo à ruína, bastando que as potências
ocidentais permanecessem vigilantes e ''contivessem'' o expansionismo
ideológico de Moscou – por todos os meios, com exceção
da guerra.
O longo telegrama e o Artigo X são fundamentais
para se entender não somente as origens e consequências
da Guerra Fria como também a formulação do
Plano Marshall, motivado em parte pelo medo do apelo comunista na
Europa destruída pela guerra. Kennan teve também um
papel decisivo na implementação das atividades clandestinas
da CIA, o que ele mais tarde reconheceu ter sido ''o pior erro''
da sua vida.
O segundo volume das “Memórias”
cobre outro período crucial da história geopolí-tica
do século 20 – 1950 a 1963, os anos mais quentes da
Guerra Fria, com o perdão do trocadilho. Aqui Kennan deixa
claro que sua intenção não é somente
produzir um tes-temunho privilegiado dos acontecimentos: já
no primeiro parágrafo do texto de apresen-tação,
ele apresenta como propósito do livro “descrever a
evolução de uma filosofia do poder público
em geral, e de relações exteriores em particular”.
Em rota de colisão com o novo secretário
de Estado, John Foster Dulles e descon-tente com os rumos erráticos
que a política externa americana estava tomando – com
demonstrações de força prevalecendo sobre as
sutilezas da negociação diplomática –
Kennan trocou, aos 46 anos, a movimentada carreira pública
em Washington e no exte-rior pela promessa de uma tranquila vida
acadêmica no Instituto de Estudos Avançados na Universidade
Princeton, a convite de seu amigo Robert Oppenheimer Kennan mora-ria
em Princeton pelo resto de sua longa – morreu em 2005, aos
101 anos – e produtiva existência, com exceção
dos anos em que, atendendo a novas convocações da
Casa Branca, assumiu as embaixadas na Rússia e na Iugoslávia.
Mas a expectativa de tranquilidade durou pouco.
No ano seguinte, o lendário gene-ral Douglas MacArthur foi
dispensado de suas funções pelo presidente Truman
em meio ao acirramento da Guerra da Coreia, e Kennan foi convocado
pelo Departamento de Estado para negociar com Iakov Malik, o delegado
soviético na ONU, um acordo de emergência sobre o conflito:
reuniões secretas, em russo, foram realizadas antes do ces-sar-fogo
formal, o que salvou os Estados Unidos de um vexame e aumentou ainda
mais o cacife político de Kennan – tanto que, em 1952,
ele foi novamente nomeado embaixa-dor na União Soviética.
Em Moscou, onde seria declarado persona non grata, Kennan aprofundou
seus estudos sobre a Ásia e o Extremo Oriente, reforçando
sua convicção de que as ações americanas
na região eram geralmente desastrosas.
As análises de Kennan sobre a Rússia,
a China e o Japão são um dos pontos altos do segundo
volume das ‘Memórias’, povoado por personagens
ilustres: Truman, Eise-nhower, Tito, Stalin, John Foster Dulles
e o senador Joseph McCarthy, entre muitos outros. Um capítulo
inteiro é dedicado às controversas Palestras Reith,
pronunciadas por Kennan em 1957, que provocaram um intense debate
internacional sobre o futuro da Alemanha e o papel dos Estados Unidos
na Europa Ocidental. Também merece desta-que a reflexão
do autor sobre a sua própria formação e amadurecimento
como historia-dor, empenhado não somente em interpretar mas
também em influenciar a condução das questões
cruciais do século 20.
George Kennan, vale lembrar, é autor de
clássicos até hoje estudados em universi-dades americanas,
como “American Diplomacy: 1900-1950” e “Russia
and the West under Lenin e Stalin”, além de 16 outros
livros, incluindo a recém-lançada edição
nos Estados Unidos de seus diários, “Kennan Diaries”,
o que atesta o continuado interesse por sua obra. Ao longo de pelo
menos 30 anos, ele foi o homem que a Casa Branca e o Pentágono
procuravam quando queriam entender as sutilezas da psicologia da
União Soviética, do Leste europeu e dos países
asiáticos. Nem sempre foi ouvido: por exemplo, ele se opôs
enfaticamente ao envolvimento americano no Vietnã, dizendo
que os Estados Unidos não tinham interesses vitais na região,
mas sua tese não vingou. Mas suas lições, em
muitos aspectos, continuam válidas, já que ele aborda
criticamente ca-racterísticas que persistem teimosamente
como marcas registradas da política externa americana: a
prevalência da lógica militar, a insistência
em vitória total em qualquer conflito, a intransigência
com os inimigos, as percepções equivocadas da política
inter-nacional por parte do Congresso e da própria sociedade
americana.
Nos dois volumes, conciliando reminiscências
pessoais, a recapitulação detalhada dos acontecimentos
e reflexões teóricas sobre as disciplinas da História
e da filosofia política, Kennan demonstra uma habilidade
extraordinária para identificar tendências a partir
de fatos isolados. Como se não bastasse tudo isso, com numa
prosa quase literária suas memórias tratam também
do imenso fardo emocional que os imperativos da política
podem representar para um homem inteligente e íntegro a quem
são atribuídas grandes responsabilidades. Suas memórias,
em suma, são o resultado da difícil missão
de combinar a teoria política pura com a prática política
impura: como diplomata-estrategista e como pesquisador-historiador,
como intérprete afiado e como ator dos acontecimentos que
relata e analisa, George Kennan teve êxito nesse empreendimento.
portal G1
17/08/2014
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