FOGO BRANDO DAS PAIXÕES QUE RUÍRAM
André Luis Mansur
Um casal jovem em crise, sem diálogo e
sem nada a perder. É assim que começa o primeiro romance
de Fernanda Gentil, jovem autora que já havia lançado
o livro de contos Língua de trapos, em 1999,
pela mesma Topbooks, e que agora revela fôlego para
uma história mais longa, cheia de sutilezas e tons intimistas,
"uma grata surpresa", na definição de Moacyr
Scliar.
A narrativa justifica o título. Barreado
é um prato típico do litoral do Paraná, uma
"carne cozida em fogo brando, durante muitas horas, em panela
de barro tampada, fechada", segundo o Novo Dicionário
Aurélio. Da mesma forma, a autora não tem pressa nenhuma
em desenvolver seu enredo, que prossegue com a tentativa de Lucas,
o marido do casal em crise, de salvar seu casamento e dar um rumo
à própria vida, levando a mulher, Maria, e a filha,
Helena, numa viagem de volta à casa da família, de
onde saiu após a morte da mãe. "Voltar é
um verdadeiro rito de passagem".
O reencontro de Lucas com o pai, Pedro, e o irmão,
Mateus, todos nomes de apóstolos de Cristo, não deixa
de ser uma espécie de pedido de perdão por ter abandonado
a família em seu momento de maior dor. "Mãe não
pode morrer antes do tempo. A minha cometeu esse pecado". Mas
a volta de Lucas traz também o germe da discórdia.
O pai, que andava meio perdido, distante, reencontra sua felicidade
com a volta do filho e entra em perfeita harmonia com a nora e a
neta. Mateus se sente desprestigiado. E começa a cultivar
um mundo à parte, feito de visões e memórias
daqueles que já se foram. "Eu, que sempre fui um mau
aventureiro, percorro o museu hermético do meu espírito".
Este quase monólogo interior de Mateus
toma conta do livro da metade em diante, com seu jeito excessivamente
sério e pragmático, em contraste com o irmão,
menos preso às amarras da família e dos negócios.
Neste tumulto sem palavras, no resgate impossível da vida,
Mateus, "que nunca se atrasa, sistemático em quase tudo"
e que dá beijos de despedida protocolares na namorada, que
ele só vê uma vez por semana, "quando o cansaço
permite", se pergunta: "Quando vou me deixar em paz?"
.
É uma história de muitas despedidas,
poucos reencontros e algumas traições, "ocupando
cada espaço da pele, infiltrando-se sorrateira nos sentidos,
despedindo qualquer centelha de lucidez". São muitas
perdas, tanto aquelas mais concretas, como a da mãe, como
as que não se percebem de imediato, entre elas a dos ideais,
perceptíveis apenas quando a família desmorona e o
tédio e a amargura tomam conta do casal. "O meu emprego
é uma droga, você está desempregada, perdemos
o quê?".
Fernanda Gentil utiliza, no início do
livro, a interessante técnica de colocar os próprios
personagens narrando os capítulos de suas vidas, até
juntá-los todos na mesma casa e na mesma linha narrativa.
Assim, nos primeiros capítulos, os personagens se definem,
se apresentam ao leitor, com pormenores biográficos e revelações
íntimas. Na casa antiga da família, cheia de reminiscências
de uma infância de muitas vozes, uma ponta de felicidade vai
surgir, e também a esperança de que as mágoas
e os ressentimentos, os rostos virados na hora do beijo de boa-noite,
as recriminações por não se preocupar com a
filha doente, a falta de sexo, tudo fique de lado diante dos novos
ares.
Mas a autora deixa claro que, mesmo sendo feita
aparentemente de coisas simples, a vida não é tão
simples assim. E tudo vai desmoronando de novo, aos poucos, como
a tinta das paredes de uma casa velha, mostrando que reviver, ou
reinventar, o passado traz apenas uma satisfação passageira
para as crises de relacionamento, tão passageira como a satisfação
que Lucas consegue em ônibus lotados, voltando do trabalho,
e que nem de longe sente com Maria.
Caderno Prosa & Verso
O GLOBO
Rio de Janeiro
07/08/2004 |