WILSON MARTINS: UM SOLITÁRIO NO PAÍS
DA "PATOTAGEM"
José Mario Pereira*
Recém-chegado aos 75 anos, ativo e combatente,
Wilson Martins é, sem margem a dúvidas, o nosso crítico
literário por excelência. Dizer que ele sempre tem
razão ou que erra muito seria apenas incorrer no lugar-comum.
O importante é reconhecer que já realizou obra de
peso, única, tanto pelo caráter documental quanto
pelo vigor que imprimiu, desde o primeiro livro, a tudo que escreveu.
Pessoalmente, como editor, vez por outra tenho
livros avaliados negativamente por ele. Com frequência não
concordo com o que escreve, ou acho que o fez de maneira pouco clara,
sobre alguns autores. Em outras ocasiões ele me soa ranheta.
Quase sempre tendo a crer que seu habitat natural é a crítica
de prosa, e não a de poesia. Impossível negar, porém,
que Wilson Martins é figura cuja atividade só faz
contribuir para uma visão abrangente da cultura brasileira
dos nossos dias. Imaginar alguém que se predispõe
a ler, democraticamente, o que se publica no país, selecionando
o que considera bom ou, às vezes, fiasco literário,
é identificar também sua generosidade e disposição
pedagógica de cobrir o que se produz aqui e agora.
Em muitas ocasiões, ao ler seus artigos,
espanto-me com sua timidez para admirar. Às vezes ele deixa
a impressão de que lê à procura somente de erros
e incoerências. Talvez entenda que é esta a função
do crítico. Incoerentes e injustos foram, no entanto, e tantas
vezes, Sílvio Romero, Agripino Grieco, Álvaro Lins
e outros companheiros seus de ofício. No mundo da crítica
francesa, que parece ser a matriz primordial do pensamento de Wilson
Martins, isto sempre aconteceu. Os exemplos são muitos em
todas as literaturas e épocas. Sainte-Beuve, Albert Thibaudet
e outros cometeram erros. Mas ninguém, em sã consciência,
pode ignorar que eles ajudaram a estabelecer o cânone do que
viria a ser a grande literatura nacional.
Acabo de realizar um longo passeio pelos até
agora 11 volumes de seus Pontos de vista, que a T. A. Queiroz
meritoriamente está editando. É simplesmente notável
a persistência de Wilson Martins no seu trabalho. Livros que
deixariam de existir, tragados pelo turbilhão da produção
editorial do país, pela ausência de revistas culturais
que ajudariam a escoar nossa produção, adquirem ou
readquirem vida nas páginas do crítico. Essa obra
é um grande mural sobre o que se produziu nos últimos
50 anos, imprescindível a quem, no país ou no exterior,
pretenda informar-se culturalmente sobre o Brasil. Já outros
autores ou livros projetados e endeusados pela mídia são
postos no devido lugar, isolados pelo crítico da paixão
e do entusiasmo que os cercaram no momento em que foram lançados.
É louvável em Wilson Martins o
ter conseguido, num país relacional como o Brasil, se manter
distante de grupos, academias ou agremiações. Não
se vê o crítico bajulando ninguém. Não
se o vê cabalando prêmios. Depois de anos como professor
em Nova York, retornou ao país e hoje, nas páginas
de O Globo, continua seu exercício de militância
crítica.
Conheço muitos que gostariam de vê-lo
morto, ou marginalizado dos jornais. Sei de outros que não
suportam sequer ouvir seu nome. Convivo com alguns que acham sua
crítica ultrapassada ou pouco universitária. Mas nenhum
cometeria a imprudência de afirmar que Wilson Martins costuma
cair de amores pela última moda literária francesa,
o mais novo intelectual produzido na Califórnia, ou que em
algum momento se deixou mesmerizar pelas marés ideológicas
que vez por outra tomam conta de nossa vida dita inteligente. Do
mesmo modo diria que são poucos os que, descontentes com
seu trabalho, podem apresentar, em contraponto, obra à altura
da que ele produziu até agora.
Quando, há tempos, respondendo a uma enquete
da Veja sobre os livros fundamentais para se entender o Brasil,
Wilson Martins se atreveu a citar a sua História da inteligência
brasileira (em sete volumes), não foram poucos os que
quiseram lhe imputar a pecha de cabotino. Se o procedimento pode
parecer insólito, ao se examinar o fato sem paixão
é difícil negar-lhe a pretensão. Pouca gente,
no mundo das letras, tem sido tão corajosa quanto ele. Ao
indicar seu livro, portanto, estava apenas sendo coerente.
O crítico de ideias José Guilherme
Merquior, que com ele terçou armas, sempre tinha à
mão a História da inteligência brasileira,
trabalho só comparável ao de Otto Maria Carpeaux,
que fez, sozinho, a História da literatura ocidental.
Igualmente o antropólogo Darcy Ribeiro — que certa
vez, reagindo a uma crítica de Wilson Martins, apelidou a
obra de "História burra da inteligência brasileira"
— muito a consultou enquanto escrevia seu Aos trancos e
barrancos. Afinal, por que não o fariam? Quem, entre
nós, realizou trabalho de tal envergadura? Em que obra, senão
nesta, mesmo levando em conta eventuais lacunas, tem-se um levantamento
da história cultural do país dos seus primórdios
aos dias de hoje?
No momento em que Wilson Martins chega aos 75
anos, incorruptível e íntegro, atento apenas aos seus
pontos de vista, acho importante dizer que já é hora
de o mercado editorial reconhecer a enorme ação depurativa
e civilizadora que vem realizando há décadas —
fato que beneficia a todos, principalmente aos editores que, através
dos seus textos, aprendemos a ver melhor, errando menos. Sua atividade
em jornal e os livros que publica muito têm ajudado a separar
o joio do trigo, contribuindo para o aprimoramento do gosto literário
do nosso leitor de cultura.
Escrevo para dar um testemunho sobre o intelectual
de cuja leitura muito me beneficiei. De propósito evito considerações
mais aprofundadas sobre seus livros, que exigiriam maior espaço
e outro tom. No momento, quero apenas deixar aqui a minha convicção
de que, no país da patotagem, do compadrio, do "você
é de direita, eu sou de esquerda", Wilson Martins é
avis rara, exemplo de coerência, integridade intelectual
e coragem.
*José Mario Pereira é jornalista
e editor da Topbooks.
caderno Prosa & Verso
O GLOBO
09/03/1996
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