PRÍNCIPE DA LIBERDADE
Livro reúne a estratégica correspondência
de Nabuco com os britânicos em prol da abolição
Rachel Bertol
Foi nos anos 1970 que o historiador britânico
Leslie Bethell, autor do clássico “A abolição
do tráfico de escravos no Brasil”, descobriu, em arquivos
dispersos no Brasil e na Inglaterra, a correspondência entre
Charles Allen, secretário da Sociedade Britânica contra
a Escravidão, e Joaquim Nabuco (1849-1910). Viu que se tratava
de material importante, com novas páginas sobre o processo
abolicionista brasileiro, e há alguns anos sugeriu a ideia
de fazer um livro a quatro mãos ao amigo, historiador e imortal
José Murilo de Carvalho. No ano passado, quando José
Murilo passou um trimestre na Universidade de Oxford, ocupando a
cátedra Machado de Assis, o projeto de publicar essa correspondência
e outras cartas trocadas por Nabuco com militantes da Grã-Bretanha
ganhou corpo. O resultado dessa parceria está em “Joaquim
Nabuco e os abolicionistas britânicos — Correspondência
1880-1905”, recém-lançado pela editora Topbooks,
com o apoio da Academia Brasileira de Letras.
Pela primeira vez, reúnem-se em livro
110 cartas dessa correspondência e, segundo José Murilo
de Carvalho, faltaram somente umas cinco das quais se têm
indicação que existem, mas que não foram localizadas.
Como observam os autores logo no início da introdução,
“um dos aspectos menos estudados da luta de Joaquim Nabuco
contra a escravidão é sua relação com
os abolicionistas britânicos”.
— A publicação do número
quase completo de cartas dessa correspondência é realmente
uma novidade, mas, é claro, só isso não justifica
a importância do volume. Temos dois fatos substantivos. Por
um lado, é muito pouco explorada a estratégia de luta
contra a escravidão fora do Brasil. Aqui a batalha era dura,
por isso a pressão internacional podia ser uma aliada. Nabuco
foi o primeiro que teve essa ideia, de ir para o centro do mundo,
que era a Inglaterra na época — diz José Murilo.
Nabuco propunha debate em termos civilizatórios O segundo
ponto substantivo, em sua opinião, era a natureza da argumentação
contra a e favor da abolição. — Havia personalidades
como José de Alencar que diziam ser a escravidão fundamental
para o Brasil, embora não a defendessem propriamente. Acreditavam
que se tratava de um processo histórico, que ia desaparecer.
Alguém como Nabuco, que defendia a abolição
imediata, era visto como antipatriota. Nesse sentido, Alencar acusava
até o imperador Dom Pedro de não defender os interesses
da nação. Nabuco respondia a essas acusações
criando uma relação entre nação e civilização.
Dizia que a civilização tem valores universais, como
a liberdade. Em sua visão, o Brasil só poderia se
afirmar como nação respeitando os valores da civilização
ocidental. Ora, o mesmo tipo de pressão que Nabuco sofria,
esse conflito entre nação e civilização,
se repete de maneiras distintas na História do Brasil. Por
exemplo, a ditadura militar condenava as pessoas colocando os interesses
nacionais acima dos valores civilizacionais. Há pessoas acusadas
de não serem patriotas, e temos assim a discussão
sobre o que é o interesse do país. Nabuco propunha
o debate em termos civilizatórios — afirma José
Murilo.
Do total de cartas reunidas — numa edição
bilíngue —, 37 são de Nabuco e, das 71 enviadas
pelos abolicionistas britânicos, 49 vêm de Charles Allen.
Há ainda três da Sociedade Brasileira contra a Escravidão.
As cartas de Nabuco estavam na biblioteca da Rhodes House, da Universidade
de Oxford, e a dos britânicos, na Fundação Joaquim
Nabuco, com sede em Recife. O volume tem orelha elogiosa do historiador
Evaldo Cabral de Mello — para quem Nabuco “vê
com grande lucidez as consequências de longo prazo da imensa
hipoteca que a escravidão lançou sobre o futuro nacional”
— e notas de rodapé elucidativas, cuja redação
foi a parte mais trabalhosa. O livro também está sendo
publicado na Inglaterra, pelo Instituto para Estudo das Américas,
da Universidade de Londres, com uma introdução exclusiva
para os leitores britânicos.
— As cartas nos ofereceram uma perspectiva
da história do movimento abolicionista nos anos oitenta do
seculo XIX e a evolução do pensamento abolicionista
de Nabuco. Esse material é muito rico porque também
nos mostra a grande amizada de que cresceu entre o brasileiro e
o inglês sob a égide dos ideais abolicionistas —
diz Leslie Bethell. Depois da assinatura da Lei Áurea, em
1888, vivamente celebrada nas cartas, a correspondência escasseia,
mas nem por isso fica menos calorosa entre Allen e Nabuco. Até
o fim da vida o britânico manterá laços com
o brasileiro. — A Sociedade britânica dedicada à
abolição da escravidão no mundo, uma espécie
de ONG avant la lettre, e a imprensa britânica, notadamente
o “Times” de Londres, foram decisivos para a sensibilização
da opinião pública internacional contra a escravidão
no Brasil. E Nabuco percebeu a importância da mobilização
dessas instâncias para o movimento abolicionista brasileiro
— destaca Bethell. Um dos pontos altos da correspondência
é a carta que Nabuco escreveu ao editor do “Times”,
enviada por intermédio de Charles Allen. Nunca publicada
pelo jornal, tinha saído apenas no Anti-Slavery Report de
1886. Nela, defende o fato de os abolicionista americanos terem
recorrido aos britânicos. Escreve Nabuco: “(...) o que
é menos patriótico: denunciar os crimes da escravidão
ao mundo como o melhor meio de colocar as classes dominantes e as
instituições no poder sob julgamento, fazendo-os envergonhar-se
da opressão da qual são cúmplices ou permitir
que estrangeiros mantenham como sua propriedade, para açoitar
e degradar, homens que amanhã, em virtude da lei, serão
cidadãos brasileiros, eleitores brasileiros e soldados brasileiros?”.
“A figura mais importante do movimento
abolicionista”
Se no início a luta abolicionista pode
ter sido vista como uma “estudantada”, tendo à
frente jovens como Castro Alves, Rui Barbosa e o próprio
Nabuco, aos poucos foi crescendo até se tornar o primeiro
grande movimento brasileiro a mobilizar a opinião pública,
nos anos 1880, destaca José Murilo de Carvalho. Nabuco —
cujo rosto estampava rótulos de marcas de cigarro e cerveja
identificados com a causa abolicionista —, foi aos poucos
ganhando mais proeminência, acredita José Murilo, “com
sua luta constante dentro do regime representativo Brasil”
pelo fim da escravidão.
— Na elite política brasileira,
no Parlamento e no exterior, Nabuco foi a figura mais importante
do movimento abolicionista brasileiro — acrescenta Leslie
Bethell. Mas depois de vencida a batalha, que destino teriam os
“grandes reformistas sociais do fim do Império”,
como José Murilo define nomes como Nabuco, André Rebouças,
José do Patrocínio? — O Rebouças teve
um destino trágico, nunca aceitou a República e morreu
com suspeita de ter se suicidado no autoexílio. Patrocínio
foi estigmatizado, apoiou a abolição decretada pela
Princesa Isabel, foi chamado pelos republicanos de último
negro vendido. Desses, Nabuco teve sobrevida melhor. Depois da abolição,
foi escrever a biografia do pai (o clássico “Um estadista
no Império”) e foi chamado pelo governo republicano,
na década de 1890. Foi um momento crucial, em que foi muito
criticado pelos antigos companheiros monarquistas e sua resposta
foi a de que estava sendo chamado para servir o país. Assim
retomou a vida política pela diplomacia. Foi nomeado embaixador
em Washington e desempenhou suas funções sempre com
brilhantismo. Fez conferências em universidades americanas,
organizou o primeiro congresso panamericano no Rio, teve destino
mais compensador, sempre com o argumento da nação,
observando que o trabalho de representação diplomática
não implicava a adesão ao sistema republicano —
defende José Murilo de Carvalho.
caderno "Prosa & Verso"
O GLOBO
17/01/2009
Leia também:
Joaquim
Nabuco e os abolicionistas britânicos
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