MARY: TERREMOTO E PAIXÃO PELA HISTÓRIA
Rachel Bertol
Aos poucos, mas trabalhando como um dínamo, Mary
del Priore começa a ocupar no Brasil um lugar destacado na divulgação
da História para o grande público — um universo no qual sobressai
o jornalista Eduardo Bueno, autor dos best-sellers da Coleção Terra
Brasilis e outros sucessos. Ex-professora da Universidade de São
Paulo (USP), onde trabalhou por 15 anos, e agora sem vínculo com
instituições (faz poucos meses, ela deixou a coordenação geral do
Arquivo Nacional), Mary passou a se dedicar exclusivamente a projetos
editoriais. No momento, prepara um livro sobre a história da África,
outro sobre o Rio, dirige uma coleção na Campus etc. Entre tantas
atividades, está lançando a mais importante obra que diz ter escrito,
pronta há quatro anos: “O mal sobre a Terra — Uma história do terremoto
de Lisboa” (editora Topbooks), que pode ser lida por qualquer pessoa,
mas não tem perfil de divulgação, como seus títulos recentes. Foi
uma ousadia de sua parte.
— Presume-se que o historiador brasileiro só
possa estudar a História do Brasil, e eu acho que fazer História
de Portugal foi, portanto, um desafio que me obrigou a sair daqui
para pensar o outro lá fora — afirmou Mary, sempre elegantemente
aprumada, em entrevista no seu apartamento da Rui Barbosa (brindado
com a vista para a Baía que, lembra ela, inspirou no século XVI
o viajante Jean de Léry a escrever sobre o Brasil e a saga de Villegaignon,
que lutou para fundar aqui a França Antártica).
A história do terremoto que destruiu Lisboa
no Dia de Todos os Santos, em 1º de novembro de 1755 — e teve o
impacto de um 11 de setembro para o mundo lusitano — foi escrita
como tese de livre-docência para a USP. Só que, antes de apresentar
o trabalho, Mary, que se mudara para o Rio por razões familiares,
deixou a universidade. Desde então, publicou muito, boa parte visando
à divulgação. Seu maior sucesso foi “O livro de ouro da História
do Brasil” (Ediouro), uma parceria com Renato Pinto Venâncio, com
mais de 30 mil exemplares vendidos. Agora, acredita que receberá
severas críticas dos pesquisadores lusitanos.
— É mesmo petulante da minha parte. Eu peço inclusive
licença aos portugueses por entrar nessa seara, mas é um bom exercício
— disse a historiadora, que não deixa de alfinetá-los: — Esse livro
vem de alguma maneira preencher uma lacuna nos estudos sobre Portugal,
porque mesmo lá existe muito pouco sobre a história do terremoto.
Tive uma enorme dificuldade de dialogar com os colegas portugueses.
Não há nenhuma obra recente que dê conta desse período.
Apaixonada por escrever e pela leitura, Mary
diz ter se inspirado na literatura de Miguel Torga e “o carinho
especial do autor pelos pequeninos portugueses, pela gente miúda
do povo” para se lançar na redação de “O mal sobre a Terra”. Nas
pesquisas que realizou ao longo de quatro anos na rica biblioteca
da Fundação Gubelkian de Paris (ela vive na ponte aérea com a Cidade-Luz,
por ser casada com um francês), Mary descobriu o personagem Jacome
Ratton, testemunha do abalo sísmico, filho de importantes comerciantes
de Lisboa em meados do século XVIII.
— Através do relato de Ratton, o leitor vai entrar
na cidade, assistir ao terremoto e saber depois o que aconteceu.
Ele era um rapazote que estava esperando, no último andar de casa,
por um cliente que nunca chegou. No fim do livro, nós o reencontramos,
quando conta seu infortúnio. Era um entusiasta do marquês de Pombal
e tentou fazer negócios com ele em vários momentos. Por ser identificado
com o grupo pombalino, acabou expulso de Portugal e morreu em Londres.
Religião é a chave para se entender o impacto
da tragédia em Portugal
“O mal sobre a Terra” é povoado de vozes miúdas
de gente comum: “A historiadora ampliou e diversificou a observação
da vida cotidiana”, destacou o historiador Francisco José Calazans
Falcon na introdução. Mas, além dessa abordagem, Mary aponta como
inédita a análise de história política que fez sobre a atuação do
marquês de Pombal.
— Longe de ser a figura de grande reformador
que a historiografia portuguesa vai construir depois, Pombal, o
senhor Carvalho e Melo, foi acusado no início de toda sorte de malversações.
Pairava sobre ele uma aura de nepotismo, de corrupção, de clientelismo
muito forte. Contra ele, a aristocracia, apoiada na religião e no
povo miúdo, tentou se organizar para evitar uma mudança na sua forma
de vida — diz Mary.
Com o terremoto, escreveu ela, “Lisboa desaparece
e seus fenômenos e tensões são vomitados, depois, num jorro extraordinário”.
Os portugueses, portanto, confrontam-se com seus medos, seu atraso
na modernidade, sua culpa religiosa. O rei dom José I foi um símbolo:
em andrajos e descalço, nas 24 horas depois da tragédia, quando
a família real foi abandonada por seus lacaios, ele percorreu as
ruas se penitenciando.
Pesquisa começou com folhetos de cordel
— O terremoto só vai ser lido na chave do religioso.
E aí, temeroso de um golpe, Pombal toma a dianteira, aniquila a
aristocracia, bota todo mundo na cadeia e cresce — explica a historiadora,
que identificou em outras partes da Europa uma visão religiosa para
explicar a desgraça. — Mesmo nos países protestantes, como a Inglaterra,
onde pensamos que o Iluminismo já ia avançado, há uma série de interpretações
religiosas do terremoto. Diziam que a culpa era dos portugueses
porque, em vez de serem protestantes, eram católicos que ainda queimavam
pessoas nas fogueiras da Inquisição e continuavam a perseguir os
judeus. Há essa interpretação em várias partes do mundo.
Sua pesquisa nasceu quando procurava, na biblioteca
da Fundação Gulbenkian, folhetos de cordel sobre monstros e encontrou,
além desses, textos sobre o abalo sísmico. Com o material, escreveu
o volume que agora lança pela Topbooks e “Os esquecidos por Deus”
(Companhia das Letras), editado há três anos. Muito disciplinada,
Mary está empenhada no momento em publicar obras para leitores que
teriam enorme prazer em ler sobre o passado, mas não conseguem se
debruçar sobre teses de doutorado.
— Há uma demanda reprimida enorme por livros
acessíveis de História — disse Mary, que comprovou isso na Bienal
do Livro, quando títulos recém-lançados pela coleção que coordena
na Campus esgotaram-se rapidamente.
— As relações que construí no meio acadêmico
hidratam o trabalho editorial e, por outro lado, fazer livros para
o leitor comum ensina a tratar melhor o produto acadêmico, a torná-lo
mais legível, mais acessível. Diferentemente do trabalho jornalístico,
o relato do historiador está apoiado em procedimentos do ofício:
a crítica da fonte, o conhecimento da teoria, a exposição de um
problema. Não há história sem interrogação.
Por isso, Mary del Priore — que está escrevendo
sobre nossos avós africanos para a Campus, e sobre o Rio de Janeiro
(com Renato Pinto Venâncio) para a Ediouro, ajuda a consolidar no
Brasil o promissor campo de divulgação da História.
Caderno Prosa & Verso
O GLOBO
Rio de Janeiro
23/06/2003
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Radiografia de uma tragédia
O terremoto de Lisboa revisitado
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