FELIPE AOS TRANCOS
José Castello
Nenhum leitor é puro. Isso não
existe. Leituras se misturam, interferem umas nas outras, se contaminam.
Acontece comigo agora, enquanto leio "O mundo à solta"
(Topbooks), novo livro de poemas de Felipe Fortuna. Vejam o meu
caso. Para um projeto pessoal, ando envolvido com a leitura da obra
poética de Hilda Hilst. Atordoado e hipnotizado pela escrita
intensa de Hilda. Aí o livro de Felipe me cai nas mãos.
Impossível ler “puramente”. É com a mente
ainda agitada pelas palavras de Hilda que eu leio Felipe. Leituras
nunca são puras também.
Detenho-me, indeciso, no primeiro poema. “A
esmo”, ele se chama. Também é um pouco como
me sinto: pisando em terra estrangeira, trazendo nas costas uma
pesada bagagem, contaminado pelas palavras. É com as mãos
sujas que chego ao poema de Felipe. O primeiro verso me surge como
uma acusação: “Eles não sabem o que fazem”.
Saberei o que faço? Posso dar algum tipo de garantia da “imparcialidade”
de minha leitura? Ou serei – como sei que sou – sempre
relativo, insuficiente, parcial?
Felipe terá que me aceitar assim. O poema
terá que me aceitar assim. Continuam os versos: “mas
eu fico aqui/ sem saber sobre o rumo,/ sem conhecer a saída,/
e apalpo o vazio que intriga/ e um peso morto nos braços”.
Sou eu, leitor contagiado pelo que fui, que ouso pisar nesses versos.
Todo leitor é isso mesmo: despreparado e tenso. Como escreve
Felipe: “Nós somos assim – morremos de medo”.
Ora, o poema não pode falar de mim - eu e Felipe não
nos conhecemos - mas, no entanto, fala de mim. O poema fala, sempre,
de quem o lê. “Nós somos. A esmo”, os versos
insistem, e eu sou uma prova viva disso. Os versos me acusam. A
poesia de Felipe me devora.
Não há outra leitura possível
de um poema. Ou ele abala o leitor, ou simplesmente não é
lido. Eu falava de Hilda Hilst - e ela falava, todo o tempo, da
intensidade. Poesia é intensidade. O que não é
vigor não chega ao poético. Os grandes poetas escrevem,
em geral - e como Hilda -, em estado febril. Volto a Felipe: “nasce
um sol à minha frente, que arrisca/ uma viagem suicida”.
A consciência do risco (do intenso). O desejo de ultrapassar
fronteiras. O poeta navega a esmo, mas é nesse estado de
perdição que ele faz seus achados.
Os poemas de Felipe Fortuna resvalam, todo o
tempo, na realidade. Falam dos perigos ecológicos, do racismo,
de orçamentos militares, dos desastres naturais, da corrida
espacial. Eles não arredam pé do concreto. Não
o temem. Mas Felipe escreve, todo o tempo, com os olhos voltados
para o alto. E é desde o alto que ele esbarra, todo o tempo
também, em nossa insignificância. E, ainda ao mesmo
tempo, em nossa precária grandeza. O poeta se parece com
Samir, o menino que dá título a outro de seus belos
poemas. Assim: “Ele crê/ em Deus de todas as maneiras:/
como pássaro brilhante, como água/ fresca entre pedras,
como o assobio/ do vento deserto”. Ali onde vemos uma coisa,
o poeta vê a mesma coisa, mas vê outra também.
É essa visão dupla que o faz poeta. Era o que Hilda
Hilst chamava de “diferença”. Disse certa vez:
“Um escritor não tem que ser natural, mas diferente”.
Mesmo em meio ao colapso, Felipe aposta na salvação.
Insiste e escreve: “Subitamente/ (como o tsunami chegou)/
finca-se a zona de paz:/ um quisto benigno/ um nódulo/ cercado
de tudo quanto há”. Zona delicada, onde “a lua
por um triz”. (A literatura, dizia Hilda, existe para comunicar
o incomunicável.) Fala Felipe também dos arames farpados
que demarcam as fronteiras entre os países em guerra. Fala
dos horrores que o homem se impõe. De sua incapacidade, enfim,
para se comunicar consigo mesmo. A poesia se alimenta também
do que não tem solução: “Não ultrapasse/
é ficar onde está/ e escolher entre dois martírios/
o que mais permite respirar”. Dizia Hilda que só se
escreve com a presença na família de uma “figura
trágica”. Pode-se dizer o mesmo a respeito do planeta.
Dizia Hilda, ainda, que o poeta vive “em estado de comoção”.
É com a comoção - esse abalo extremo que sacode
todo o corpo - que Felipe costura seus versos.
Fala da fome - esse estado extremo, em que nada
mais importa. “Acordar. A comida não dá./ Andar,
andar sem comer”. Mais à frente: “Os ossos podem
até sobrar,/ mas isso é tudo./ Não há
mais”. Uma poesia que se alimenta dos restos, das migalhas,
do mais difícil. Uma poesia que se atreve a tocar na “coisa
indizível” - para usar, mais uma vez, uma expressão
de Hilda. Tento me afastar dela, para ficar só com Felipe,
mas os dois poetas se contaminam. A poesia traça sua batalha
dentro do leitor. É aqui, em minha frágil mente de
leitor, que ela toma corpo.
Escreve Felipe em “As letras dobradas”,
forte poema inspirado na figura de Jean-Paul Sartre: “Agora,
porém, descubro que nada/ se salva: nome após nome,
somos/ feitos mesmo de palavras”. Fala do velho deus Baal,
que “já foi adorado, foi tempestuoso e fértil”.
Tudo (mesmo um deus poderoso) se desmancha _ e as palavras restam
como provas. Resta ao poeta a rotina (intensa) do trabalho: “Só
me resta trabalhar: na meeira,/ depois de colhido o primeiro algodão,/
quem sabe a safra se renove e deixe/ a palavra a salvo, pronta e
reeleita?”
Enfrenta o poeta um momento, o nosso, em que
a poesia dá adeus ao papel (será mesmo?). Constata:
“Agora a palavra/ acende outra luz./ Ali estava suja de tinta/
e água viva/ (...)/ Vá vê agora como fica a
notícia/ sem recorte”. A poesia - a palavra - se transforma
em luz. Também Hilda desejava “ir além da linguagem”.
Em uma epígrafe, ela recorda as palavras de Mora Fuentes:
“Intensidade era apenas isso tudo o que eu sabia fazer”.
Legado de poetas, a luz agora se derrama entre os dedos de Felipe
Fortuna. Resulta essa poesia densa, mas fluida - que não
se esquiva de enfrentar a desorganização do real.
Felipe escreve aos trancos. Agarra-se aos reflexos
do real, um real intempestivo e revolto. Em “O diplomata alerta”,
diz: “No meu país se dorme tão pouco:/ uma música
vibra no sono”. Falará do país real, ou daquele
território fugidio no qual só os poetas ousam pisar?
É com o fôlego curto e o coração agitado
que o poeta escreve seus versos. Que Hilda fez o que fez. Ali onde
Felipe, agora, ousa fazer. A mim, como leitor, só resta segui-los.
Publicado na coluna de José Castello
Caderno Prosa & Verso
O GLOBO
Rio de Janeiro
28/02/2015
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