DÉCADA DE EMANCIPAÇÃO
Livro reúne artigos sobre o pensamento
no Brasil dos anos 50, sufocado em 64
Isabel Lustosa*
Obra que certamente fará longa carreira
em nossos cursos acadêmicos, esta coletânea é
subsidiária da tradição de estudos apresentados
anualmente nos encontros da ANPOCS, no GT de Pensamento Social no
Brasil, ao qual seus organizadores e boa parte dos autores são
ligados. Os textos reunidos aqui representam uma importante releitura
da sociologia brasileira em seu momento fundador – pois foi
realmente a partir dos anos 1950 que a disciplina ganhou forma e
prestígio para, posteriormente, ter grande influência
nos destinos do Brasil.
A tradicional busca de explicações
para o nosso atraso, que na década de 1920 se concentrava
em aspectos como raça, território, clima, etc., foi
retomada nos anos 1950 a partir de novos paradigmas. Se já
vivíamos em contexto de urbanização e industrialização,
numa ordem democrática, secularizada e competitiva, por que
essa nova realidade, ao invés de resolver, reiterava a exclusão
social, a pobreza e as disparidades regionais?
A sociologia, suas teorias e métodos
forneceram o instrumental para enfrentar essas questões.
E um dos locais em que elas foram mais debatidas foi o curso de
sociologia da USP, onde a disciplina se institucionalizara sob a
orientação de Florestan Fernandes.
O Brasil pensado a partir da economia
Segundo Milton Lahuerta, a tradição
uspiana de associar pesquisa e ensino, que só a partir daí
se aplicaria a outras universidades brasileiras, propiciou maior
investimento no rigor teórico e metodológico preconizado
pelo sociólogo paulista. A guinada marxista de seus alunos
– Fernando Henrique Cardoso, Otávio Ianni, José
Artur Giannoti e Leôncio Martins Rodrigues, que se reuniram
no grupo de leitura de O Capital – resultou na proposição
de um marxismo cuja ênfase não estava na articulação
entre teoria e prática. Desta maneira, se contrapuseram à
tradição que vinha se firmando no Brasil de um marxismo
que não se pautava pela obra maior de Marx e que preteria
o estudo do capitalismo em favor do tema do colonialismo.
A ênfase numa sociologia restrita ao ambiente
acadêmico também os distinguia do grupo que, no Rio
de Janeiro, e liderado por Álvaro Vieira Pinto – tema
do artigo de Norma Côrtes – fundara o Instituto Superior
de Estudos Brasileiros (ISEB). Na então capital do país,
era impossível à intelligentsia se manter
à margem do debate e da ação política.
Essa centralidade aproximaria os isebianos da CEPAL, organismo formulador
de teorias para toda a América Latina. Foi nesse contexto
que ganhou corpo e conteúdo o grande tema daquela década
e das duas que se lhe seguiram: o subdesenvolvimento dos países
do Terceiro Mundo.
Os anos 1950 assistiram à confirmação
da tendência de se pensar o problema brasileiro a partir da
economia. Linha que teve como precursores Roberto Simonsen e Caio
Prado Jr., mas que foi totalmente dominada por Celso Furtado –
tema do artigo de Vera Cepêda – e suas teses sobre planejamento,
desenvolvimento e subdesenvolvimento. Este seria, na visão
de Furtado, fruto da aceitação acrítica pelos
países periféricos das teses sobre os automatismos
do livre mercado e efeito natural da lógica do sistema capitalista.
No Brasil, essas condições seriam
acentuadas, entre outros fatores, pela predominância do latifúndio
e da economia agroexportadora, baseada na monocultura, setor que
mais perdia durante as crises mundiais. Ao mesmo tempo, ao descuidar-se
do mercado consumidor interno, o setor era responsável direto
pela escassez e pelos altos preços dos alimentos. Para reduzir
o problema, Furtado propunha o estímulo à agricultura
de pequena propriedade voltada para o mercado interno.
Segundo Celso Furtado, caberia ao Estado democrático
orientar a atividade econômica por meio de instrumentos como
tributação, políticas cambiais, subsídios
e investimentos em determinados setores. Ao mesmo tempo, para garantir
a dinâmica do mercado consumidor interno – base do crescimento
de qualquer economia – seria preciso proteger o emprego e
o salário do trabalhador. Mas, para o economista, tudo isso
deveria ser o produto da participação política,
da organização social e da pressão sindical.
A seu ver, o Estado seria o agente da transformação,
mas somente a sociedade civil poderia cobrar um destino público
para o crescimento econômico.
A atuação do físico brasileiro
José Sergio Leite Lopes na grande imprensa se insere na verdadeira
cruzada desenvolvimentista que marcou a década. Em seus artigos,
ciência e desenvolvimento foram associados numa campanha de
valorização da atividade cientifica, mostrando sua
relevância para a economia. Por outro lado, com o aval da
ciência, as teses desenvolvimentistas obtinham legitimidade.
Seus textos, segundo André Botelho, permitem acompanhar o
percurso da teoria e da prática do desenvolvimento naquele
período, bem como seus efeitos, dilemas e contradições.
A trajetória de suas perorações mostra o tamanho
da frustração com o fim das garantias constitucionais
no golpe de 64.
Pois 1964 foi a reação dos setores
tradicionais da vida brasileira ao processo de mudança que
marcara a década de 1950. Como diz Elide Rugai, propostas
aparentemente ultrapassadas continuavam a ter peso decisivo na dinâmica
social e alguns autores persistiam na defesa do modelo agrarista
como ideal para o Brasil. Na contramão do otimismo de Vieira
Pinto, Furtado e Leite Lopes, o pessimismo de Raymundo Faoro com
a subordinação da sociedade ao Estado se acentuara
entre as edições de Os donos do poder de
1958 e 1975, tema estudado por Bernardo Ricupero e Gabriela Nunes
Ferreira. No mundo das belas-letras e das artes, o conflito entre
o velho e o novo assumia a forma de manifestações
artísticas originais.
Leitura inteligente dos textos de Nelson
Rodrigues
As relações do PCB com artistas
e intelectuais a ele ligados, por exemplo, demonstra Marcelo Ridenti,
foram marcadas pela ambiguidade. De um lado, o Partido lhes conferia
legitimidade e prestígio, garantindo uma rede de proteção
e solidariedade no Brasil e no exterior; de outro, os mantinha em
permanente vigilância, temendo os seus “desvios pequeno-burgueses”.
No artigo de Alzira Abreu, merece destaque o
papel do político mais controvertido daquela década,
Carlos Lacerda, na renovação da imprensa. Ainda no
jornalismo, o conflito entre valores modernos e tradicionais são
a tônica das crônicas de Nelson Rodrigues, na leitura
inteligente de Marcelo Lacombe.
No final da década de 1940, foi criado
o ateliê do Engenho de Dentro, cujas manifestações
ficaram mais conhecidas através do trabalho de Nise da Silveira.
Gláucia Villas Boas demonstra como aquele espaço teve
importante papel na opção pelo concretismo de importantes
artistas brasileiros.
No artigo que encerra o livro, Gildo Marçal
Brandão junta as pontas da história e produz um balanço
do processo que fez com que o nacional desenvolvimentismo perdesse
a força que teve nos anos 1950. O regime militar incorporou
algumas de suas propostas, mas anulou sua dimensão popular
e democrática.
A redemocratização ocorreu num
quadro de fragilidade econômica em que a idéia de Estado
mínimo e de um mercado que se autorregularia tornou-se hegemônica
no Brasil. Com a escassez de emprego, os movimentos sociais perderam
força. Segundo Brandão, ao optar por um modelo de
puro crescimento econômico, voltado para a estabilidade da
moeda e sem compromisso com as desigualdades sociais e os anacronismos
estruturais, essa política implicou a aceitação
e o reforço do lugar que nos havia sido designado na ordem
econômica mundial antes dos anos 1950.
*Isabel Lustosa é sócia do
IHGB e pesquisadora da Fundação Casa de Rui Barbosa
caderno Prosa & Verso
O GLOBO
28/03/2009
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