RIMBAUD SEM FIM
Com a publicação da correspondência
do poeta francês, Brasil tem acesso à obra completa
de uma figura sem equivalentes nos dias atuais; biografia feita
por Edmund White também é editada no país
Irinêo Baptista Netto
Rimbaud (1854-1891) é o tipo de figura
que a indústria cultural de hoje adoraria explorar. É
até inexplicável que não o façam. Jovem
e rebelde, escreveu toda a poesia pela qual é lembrado entre
os 16 e os 19 anos. Com 19 (uma criança para os padrões
atuais, mas definitivamente um adulto na segunda metade do século
XIX), abandonou a literatura para virar mercador de armas na África
e nunca mais escreveu outro verso. Nunca mais. A vida era pouco
para Rimbaud.
Há questão de semanas, o Brasil
entrou para o grupo de países que podem ler, na língua
pátria, tudo o que produziu o “poeta das sensações”.
Foi quando a Topbooks publicou Correspondência, terceiro
e último volume das obras completas, com tradução
de Ivo Barroso, que já havia vertido ao português a
poesia e a prosa poética de Rimbaud (leia abaixo entrevista
com Barroso). Nesta semana, a Companhia das Letras publica Rimbaud
– A vida dupla de um rebelde, ensaio biográfico
de Edmund White. O livro é curioso porque o autor não
tem pudores de se incluir na história e começa a narrativa
lembrando como descobriu o poeta num internato de Michigan, em 1956.
Jean-Nicolas Arthur Rimbaud tem um magnetismo
raro de se encontrar em escritores. Com uma personalidade explosiva
e uma disposição incomum para aventuras – sexuais
e literárias entre outras –, o poeta seria o rockstar
oitocentista, o sujeito que, se vivesse no presente, estaria quebrando
quartos de hotel e levando a vida como se o mundo fosse acabar num
barranco. Seria talvez uma mistura de Mick Jagger (apesar da idade
avançada) com J. D. Salinger (já morto, mas uma referência
de artista recluso). O nonsense da comparação é
revelador: não existem equivalentes para Rimbaud. Nenhum
personagem atual consegue ombrear com o autor que atordoa leitores
com O barco bêbado e oferece epifanias com Iluminações.
No primeiro, o adjetivo “bêbado” aparece na tradução
de Augusto de Campos. A versão de Ivo Barroso prefere “ébrio”.
Sobre o poema, Campos afirmou que é “um
texto-ícone que funde o visionário e o visualista,
sobrepondo à precisão imagística o 'desregramento
de todos os sentidos' preconizado pelo poeta”. As aspas foram
tiradas da introdução de Rimbaud livre (Perspectiva),
livro raro que compila 11 poemas e se encontra somente em sebos.
O poeta Fabrício Corsaletti (Esquimó), que
adora Rimbaud, gosta da radicalidade do artista. “Ele nunca
dá um passo atrás nem faz concessões”,
diz. As atitudes do simbolista francês, com frequência,
são mais exploradas do que seu legado literário. Essa
discrepância é evidente no filme Eclipse de uma
paixão (1995), de Agnieszka Holland. Mais preocupada
em falar da relação homossexual e destrutiva de Rimbaud
(Leonardo DiCaprio) com o poeta Paul Verlaine (David Thewlis), a
cineasta polonesa deu pouca atenção à poesia.
Sincronia, a Hedra acaba de publicar A voz
dos botequins e outros poemas, uma amostra dos talentos de Verlaine,
na tradução clássica de Guilherme de Almeida
(1890-1969). Como qualquer outra situação, o interesse
na imagem de Rimbaud também tem pelo menos dois lados. Esse
culto à personalidade, uma característica das últimas
décadas, pode atrapalhar a apreensão da obra. Porém,
há quem se aproxime da poesia porque teve contato com o mito.
A atenção dada à vida de Rimbaud seria então
uma porta de entrada para os seus versos. Pense que só a
biografia tida como a mais importante em língua francesa,
publicada em 2001 e citada por Edmund White, foi escrita por Jean-Jacques
Lefrère e soma 1.242 páginas. É sensato supor
que já se publicou dezenas de milhares de páginas
sobre ele. Se considerarmos os trabalhos acadêmicos, pode
pôr centenas de milhares sem medo de errar.
A importância para as letras universais
do homem que morreu com 37 anos, destruído pelo câncer
e depois de ter uma perna amputada por causa de um tumor, pode ser
explicada numa frase simples: ele mudou a história da literatura.
E cometeu o suicídio poético mais atordoante de que
se tem notícia, ao abandonar as letras sem pestanejar. “Seu
gesto de virar as costas para a Europa é muito significativo”,
diz Rodrigo Garcia Lopes, que traduziu Rimbaud com Maurício
Arruda Mendonça em Iluminuras. Entre os feitos do
francês, Garcia Lopes lista o ataque ao romantismo, a ruptura
com a forma e o conteúdo da poesia, a necessidade de ser
“absolutamente moderno” e imerso por completo em seu
tempo.
Pense em Marcel Proust, Jack Kerouac, Mario Vargas
Llosa, Pablo Neruda, Roland Barthes, Jean-Paul Sartre. Todos já
pararam para pensar em Rimbaud e, a certa altura, falaram dele.
Bob Dylan fez “rambô” rimar com “go”
nas letras de “You're gonna make me lonesome when you go”.
Jim Morrison (The Doors) venerava o francês. Para Augusto
de Campos, “Rimbaud é, sem dúvida, um dos grandes
inovadores da linguagem poética, na raiz da modernidade.
Se não elude ou desestrutura a sintaxe tão fundamente
como Mallarmé, se não conflita, no mesmo grau, palavra
e significado, desestabiliza a semântica poética com
as associações insólitas de sua imaginação
e a violência do seu vocabulário, corrói os
limites entre prosa e poesia, consciente e inconsciente”.
Começar a ler poesia – e a de Rimbaud,
para ser específico – é entrar para um mundo
com valores próprios. Se duas boas traduções
de um mesmo romance têm diferenças sutis e elas dificilmente
vão alterar a compreensão do livro, na poesia, as
escolhas do tradutor pesam mais. O compromisso das palavras com
os versos, rimas e imagens cria situações difíceis
para a tradução. Em alguns casos, impossíveis.
Edmund White, o ensaísta-biógrafo,
falando sobre O barco bêbado, diz que o poema “é
amplamente reconhecido como uma obra-prima de rimas sutis, mas rimas
tão descontraídas que são quase indetectáveis,
sobretudo em meio ao assalto de imagens tão surpreendentes
e de uma sintaxe intrincada e sinuosa entrelaçadas por uma
complexidade de particípios presentes e passados e frases
colocadas em aposição a nomes – uma gramática
que, de fato, está sempre propondo cenas hipotéticas
que se misturam como uma realidade palpável e, em seguida,
voltam a se dissolver em alguma coisa pretérita, apenas relembrada”.
A descrição de White e toda a bajulação
para Rimbaud só fazem sentido quando você lê
a obra do menino terrível, o enfant terrible da poesia.
“Para mim, a imagem de Rimbaud é meio como aquela miragem,
aquela onda de calor que se vê nos desertos”, diz Garcia
Lopes. “Ela sempre vai nos fugir”.
* * *
ENTREVISTA COM IVO BARROSO
O desígnio final da arte
Irinêo Baptista Netto
* Ivo Barroso é o responsável pela
tradução da obra completa de Rimbaud no Brasil, publicada
em três volumes pela Topbooks – Poesia Completa,
Prosa Poética e Correspondência. Na entrevista
a seguir, Barroso fala sobre Correspondência, lançado
há pouco pela Topbooks, e comenta sua relação
com a obra de Rimbaud, que já dura mais de três décadas.
Há quem identifique em Rimbaud a atitude
de um astro do rock, um ícone a ser cultuado por adolescentes
– algo que a cineasta polonesa Agnieszka Holland tentou explorar
em Eclipse de uma Paixão (1995), colocando o ator
Leonardo DiCaprio para interpretar o poeta. O que pensa dessa imagem
que se faz de Rimbaud?
R – Acho uma capitis diminutio, já que Rimbaud
é seguramente um dos maiores poetas da França e do
mundo. Aliás, a exploração da vida de Rimbaud
tem sido danosa ao conhecimento de sua obra, que é o que
de fato interessa a quem esteja à procura de Poesia.
É possível que o mito em torno
de Rimbaud atrapalhe a percepção que se tem hoje de
sua obra?
R – É exatamente o que esbocei dizer
na resposta anterior. Temos presenciado o aparecimento de inúmeras
obras sobre a vida de Rimbaud e pouquíssimas sobre a sua
poesia. É verdade que sobre esta já foi dito tudo
ou quase tudo no passado; os estudos críticos vasculharam
os poemas, os versos, as frases, a pontuação (há
uma discussão sobre uma vírgula num dos poemas) –
isto em outros domínios lingüísticos. No Brasil
só agora aparece uma edição da obra completa,
ao passo que em inglês e italiano, por exemplo, cada editora
famosa tem a "sua" edição integral.
Mallarmé teria dito que Rimbaud era uma
espécie de hooligan que poderia causar danos à
literatura francesa – e, de fato, causou. Na sua opinião,
quais foram esses “danos”? O que a poesia dele fez para
literatura francesa (e para a universal)?
R – Rimbaud tinha a perfeita noção
de que a literatura francesa estava num impasse e que era necessário
criar uma linguagem nova. Deve-se a ele a liberdade de ousar a imposição
do novo como sendo o desígnio final da arte. Foi ele quem
desconstruiu o alexandrino, iniciou o verso livre, elevou o poema
em prosa à condição de grande poesia.
O biógrafo britânico Graham Robb
defende que Rimbaud, ao abandonar a literatura e viajar pela África,
transpôs sua obra para sua vida. Esse seria um dos valores
da correspondência do poeta porque ela, de certa forma, dá
sequência aos escritos poéticos. O senhor concorda
com essa ideia?
R – Tenho sustentado que o abandono da
poesia por ele se deveu ao fato de ter consciência de que
havia chegado ao ponto máximo, ao páramo a que a poesia
poderia alcançar. Continuar seria se repetir, o que não
era seu intento. Fechou as malas e foi ganhar dinheiro, mas nessa
nova vida continuou se distinguindo pelo seu anseio de sempre fazer
melhor, de ir mais além, de buscar o desconhecido. A correspondência
dita "africana" do poeta é condizente com essa
transformação, com essa assunção de
uma nova vida; nela não há o menor vestígio
literário, embora não seja despida de sentimentos
humanos.
O mesmo Robb diz que as cartas de Rimbaud eram
mais acuradas na análise dos países que visitou na
África do que inúmeros relatórios diplomáticos
e que as cartas teriam influenciado a visão da França
sobre o mundo estrangeiro. Como o senhor acha que deve ser lida
a correspondência de Rimbaud? Qual é a conexão
mais evidente dela com sua obra poética?
R – Sob certo aspectos, a correspondência
"africana" é a negação da obra poética
de Rimbaud. Seu espírito observador, sua capacidade de expressão
certamente fazem de seus relatórios documentos preciosos
da historiografia de viagens; há passagens bem mais explícitas
e detalhadas do que os estudos geográficos da época;
mas nada encerram do que chamamos de literatura, algo que era a
nota dominante de sua correspondência nos chamados "anos
literários" (vide, por exemplo, a “Carta do Vidente”).
Nas suas palavras, o que a correspondência
publicada agora pela Topbooks revela sobre Rimbaud?
R – Tudo, principalmente tudo sobre o "outro"
Rimbaud, o que deixou a literatura no auge quando a maioria ficaria
colhendo os louros de suas conquistas, aparecendo nos jornais e
nas livrarias, possivelmente até ganhando algum com a venda
de seus livros, além de se tornar uma "figura notória".
O que a correspondência revela, principalmente, é a
outra face de sua personalidade, a determinação de
ganhar dinheiro, voltar para viver de rendas, casar-se, ter um filho
e fazer dele um engenheiro (ou seja, o oposto de um literato).
Robb escreveu sobre Rimbaud dizendo que “poucos
poetas lucraram tanto com má poesia”. Em meio à
produção de Rimbaud, existem versos ruins? (É
uma pergunta estranha, mas ninguém costuma falar sobre a
parte da obra que não é genial.)
R – É preciso interpretar de maneira
correta as palavras de Graham Robb, que aliás não
é autoridade reconhecida da obra de Rimbaud; você não
vê essa afirmativa em nenhum dos grandes especialistas do
assunto, como Alain Borer, Yves Bonnefoi, Jean-Jacques Lefrère,
Pierre Briunel, André Guyaux, etc. A produção
poética de Rimbaud, da primeira fase, a partir de "Sensação",
é uma espécie de escada de excelência, ou seja,
cada um dos poemas é mais "conseguido", mais avançado,
tecnicamente mais perfeito que o outro, até atingir os zênites
de "Memória" e "O barco ébrio".
A segunda fase, os chamados Novos versos e canções,
encerra alguns dos mais importantes poemas da literatura francesa,
e, finalmente, as Iluminações, que até
hoje são consideradas ponto de referência de toda a
poesia moderna. Talvez o que Robb quisesse equivocamente dizer é
que, na edição da obra de Rimbaud, ela própria
muito reduzida, os organizadores transcrevem poemas-brincadeira,
como o chamado Album Zutique e outros fragmentos que, na
verdade, não são poesia, mas divertimentos rimados.
Pode-se também arguir que alguns dos versos da quase-infância,
quando Rimbaud ainda imitava Hugo e Banville, sejam medíocres,
e são; sua presença na coletânea serve talvez
para mostrar o "salto qualitativo" que um menino é
capaz de dar ao passar dos 14 para os 15 anos.
Como se deu seu primeiro contato com a obra de
Rimbaud? Ao longo das décadas, o que o manteve interessado
no poeta de Charleville?
R – A história é longa e
não vale a pena repeti-la aqui. Sintetizo: o primeiro poema
de Rimbaud que li foi o "Soneto das vogais"; traduzi-o
e levei-o ao Suplemento Dominical do Jornal do Brasil (aí
por 1955) que me acolhera em sua redação. Fiquei sabendo
que o poema já havia sido traduzido diversas vezes e me aconselharam
a traduzir os versos rimados que aparecem na Estadia... (que
eu não conhecia.) Comprei o Arthur Rimbaud – Poètes
d'Aujourd'hui, de Claude Edmonde Magny, edição
Seghers. Era uma antologia, mas a leitura da Estadia me transtornou
e me prometi que, mais tarde, haveria de traduzi-la. O que me manteve
interessado na obra ao longo de décadas foi a decisão
de traduzir a obra completa e a leitura das duas centenas de livros
que tenho sobre o assunto.
A primeira tradução de Uma estadia
no inferno foi publicada em 1970. Desde então, o senhor
verteu ao português toda a obra de Rimbaud – missão
concluída agora, com a edição da Correspondência
pela Topbooks. Depois de tanto tempo dedicado à obra de Rimbaud,
eu poderia perguntar que marcas esse trabalho deixou no senhor?
R – A minha foi em 1977. Antes de mim,
Xavier Placer em 1952 traduziu-a como Uma estação
no inferno e Lêdo Ivo, em 1957, como Uma temporada
no inferno; homenageei esses dois pioneiros (e mais o português
Mário Cesariny de Vasconcelos) dedicando-lhes o segundo volume,
Prosa Poética. Deixou-me o conhecimento de um grande
poeta, a satisfação de ter conseguido, ao traduzi-lo,
produzir alguns belos versos que eu adoraria fossem só meus.
Deu-me, é certo, muito trabalho traduzir, rever minuciosamente
cada reimpressão, falar a respeito, manter-me em dia com
o que ia aparecendo sobre ele.
Para o senhor, quem é Arthur Rimbaud?
R – Um jovem poeta genial.
* * *
ENTREVISTA COM RAUL ANTELO
O espírito cristão de um poeta
Irinêo Baptista Netto
* Doutor em literatura brasileira pela Universidade
de São Paulo e pesquisador, Raul Antelo é uma referência
dentro dos estudos de modernismo. A seguir, em entrevista concedida
por e-mail, o professor da Universidade Federal de Santa Catarina
comenta vários temas ligados a Rimbaud, poeta que influenciou
os escritores modernistas do Brasil.
Mito evasivo
Toda literatura é, de algum modo, póstuma
e derradeira. O escritor contemporâneo se reconhece como o
último leitor, mas intui também que só esse
último leitor pode, cabalmente, ambicionar ser escritor.
Há aí operando uma fantasmagoria, a do pecado original.
Então, do fundo do naufrágio, volta-se a Rimbaud,
ao mito evasivo, estudado por Furio Jesi ou Yves Bonnefoy. Alain
Badiou vê, em Rimbaud, um exemplo acabado de inestética,
na linha de Mallarmé, Pessoa, Beckett ou Celan; mas nunca
de Hugo, Baudelaire, Verlaine, Reverdy ou Aragon, poetas muito narrativos
ou expressivos.
Mário de Andrade, que confessava estudar
a lição Rimbaud, disse que Rimbaud não foi
um indivíduo bem dotado para a arte, nem esta se desenvolveu
necessariamente nele. Teve golpes geniais, O barco bêbado,
umas poucas Iluminações, a Estadia no Inferno.
Gênio
A diferença entre os gênios literários
(e quaisquer outros...) e Rimbaud está em que aqueles metodizam
o lirismo interior, desenvolvem as suas qualidades intelectuais,
e por isso não se estiolam. A genialidade deles se torna
por isso dotada duma espécie de constância, que permanece
a vida toda, e só tem os desfalecimentos inerentes aos próprios
fenômenos psicofísicos da existência humana.
A bem dizer, todos os seres humanos que passeiam
neste momento na Rua Quinze são gênios estiolados...
como Rimbaud. Ele é o caso característico do menino
espertinho: brilha muito e vira povo depois. Um mimetismo exacerbado
que, a serviço duma sensibilidade enorme, o transformou de
menino espertinho em menino-prodígio. Era um impulsivo, um
enfant de colère. Era inteligente? Se quiserem, era.
Mas uma inteligência sem fatalidade, uma inteligência
disponível, sem propensão para um determinado município
da criação intelectual.
Abandono
Rimbaud publica, então, o seu primeiro
livro de versos, que passa inteiramente despercebido. Tem má
reputação. Alguns já fogem dele. Não
luta. Desinteressa-se de repente de tudo e quer abandonar a literatura.
Mas na verdade a literatura é que o abandona. Rimbaud está
com 18 anos, idade em que o moço principia se refazendo das
fraquezas naturais deixadas pelo crescimento, idade de normalização
do ser, em que o princípio fecundado, o homem, calmamente
devora o princípio fecundador, a criança. Era um impulsivo.
Continuará impulsivo. Era um aventuroso. O será sempre.
Era inteligente? Terá sempre a inteligência burguesa
de um homem comum. Aprenderá várias línguas,
o que não é nenhuma África. Assimilará
fácil. E não escreverá nunca mais. Era um ser
fatalizadamente artista? Normalmente artista? Era psicologicamente
um poeta? Penso que não.
Todas as suas qualidades e defeitos permanecem,
transformados apenas pelo manejo da idade e das circunstâncias
da vida. Mas não escreve mais versos nem constituições,
e não terá mais golpes de gênio através
do tempo. Teve-os na anormalidade do menino-prodígio, mas
o menino-prodígio se acabou. Ficou o homem quase normal,
como todos nós, e sem gênio, fisicamente forte, possante
mesmo, dizem. Que será o caixeiro-viajante, empregado de
escritório, negociante de café, eu, tu, ele.
Cristão
Apesar do testemunho de Isabelle Rivière,
sua irmã, segundo o qual o vidente das Iluminações
teria se confessado e comungado na hora da morte – e que necessidade
teria essa criatura de mentir em tão grave assunto? –
os céticos têm direito de duvidar, achando que na semi-inconsciência
da agonia tudo é possível… Mas o fato é
que a obra de Rimbaud está toda impregnada de um profundo
sentimento cristão.
Nesse livro sombriamente, desesperadamente cristão
que é Uma estadia no inferno, não desse cristianismo
adocicado de (François) Coppée ou (Francis) Jammes,
mas do cristianismo catastrófico de certos místicos
da Idade Média, que força religiosa, que intuição
do martírio e do sacrifício! As palavras famosas –
changer la vie (mudar a vida) – são as que São
Paulo aplica ao cristão que deve deixar o homem velho –
o homem formalista, o fariseu, que Rimbaud justamente detestava
– para se revestir do homem novo, que enxergava todas as coisas
à luz de Cristo, e assim transformar a sua vida e a do seu
próximo.
E a confissão definitiva, que só
um espírito católico poderia fazer, a de que a solução
de seu problema estava na caridade: La charité est cette
clef (a caridade é esta chave), diz textualmente. Não
a pretensiosa e artificial caridade filantrópica –
burguesa ourocratizada, mas a caridade que é a própria
essência divina pela qual o homem participa da Divindade –
o amor universal que impulsiona o homem a se despojar do seu egoísmo
e a transfundir-se nos outros…
Não preciso me referir em detalhes a diversas
partes das Poésies como “Les pauvres à
l'église”, “Les soeurs de charité”
ou “Les premières communions” ou àquele
magnífico poema “Génie”, das Iluminações,
que se refere evidentemente ao Cristo. Porque um livro como Uma
estadia no inferno, que determinou a conversão de Claudel
(é verdade que Breton considera-o um imbecil…), é
suficiente para datar com vigor o espírito cristão
de um poeta.
Desejos
E mais perto de nós, o crítico
italiano Franco Rella, em seu livro Georges Bataille, filósofo,
parte da ideia de Rimbaud mudo, afásico, alguém que
renunciou à literatura, para dizer que a literatura, quando,
apesar de tudo, ainda subsiste, procede cancelando-se, e opera como
opera o tempo, que, dos seus edifícios multiplicados, só
deixa subsistir os traços da morte. Nessa linha de abandono,
que poderíamos interpretar como a do ser jogado ao bando,
degradado na sua vida nua, o escritor argentino César Aira,
um dos tantos que quis ser Rimbaud, diz que, por incrível
que pareça, os desejos mais loucos e irrealizáveis
estão se tornando realidade em nossas vidas, ou seja, em
Rimbaud. Não como história, nem como filologia, e
nem mesmo como crítica literária, mas como um procedimento,
um dispositivo (dis-positivo, um mecanismo de negatividade) que
transforma o mundo em mundo, o mundo em si mesmo, ou seja, em pura
imanência. E os escritores, em Rimbaud.
* * *
Artigo
As contradições em que Rimbaud
se meteu
Sandra M. Stroparo*, especial para a Gazeta
do Povo
No período que passou em Paris, em torno
dos 17 anos, Rimbaud conseguiu algum respeito literário mas
não deixou boas lembranças entre muitos dos intelectuais
da época; mais por conta de sua excessiva juventude e atitude
rebelde e impudente nas reuniões de que participou do que
necessariamente por sua obra, pequena e praticamente desconhecida
da maioria. Mas enquanto passava seus últimos anos de vida
na África e já tinha, havia muito, parado de escrever,
seu nome se fazia na Europa, em grande parte graças a Paul
Verlaine – embora eles não mais se falassem –
que de posse de muitos de seus textos fez todo o possível
para vê-los publicados. Naquele momento, no vácuo criado
pela morte de Victor Hugo e Baudelaire, a poesia francesa definiu
muito do que seria a literatura do século seguinte. Os novos
autores já estavam por ali, procurando ocupar os espaços
recém-abertos com obras novas, inúmeras revistas e
meetings poéticos.
Em 1883, Verlaine publicou Les poètes
maudits, um texto crítico e de apresentação
de pequenas antologias, que não apenas definiria nomes importantes
da época como acabaria também por fundar essa quase
instituição moderna que é o "poeta maldito".
Rimbaud é posto entre Corbière, Mallarmé, Villiers
de l'Isle Adam e o próprio Verlaine (sob o pseudônimo
de Pauvre Lelian), e os comentários do autor somados à
pequena amostra de poemas são suficientes para que sua fama
se consolide e que seu nome suporte a passagem do século.
O início da formação de
sua fortuna crítica foi tumultuoso e contraditório.
Isabelle Rimbaud, irmã do poeta e católica convicta,
fez esforços consideráveis, incluindo mutilação,
destruição e ocultação de partes da
obra, para que seu irmão entrasse para a história,
sim, mas segundo suas convicções religiosas. Essa
atitude, obviamente não respeitada por Verlaine, criou uma
oposição que chegará alguns anos depois a um
duplo Rimbaud: um católico, da leitura de um Paul Claudel
e de outros estudiosos, que enxergavam em Uma temporada no inferno
a mais substancial afirmação moderna do cristianismo;
e um outro que permaneceu, o herético que será escolhido,
por exemplo, pelos surrealistas.
E esse é só um dos exemplos das
contradições em que Rimbaud se meteu. Vivo, não
mediu meios para viver todos os opostos possíveis. Morto,
sua biografia e sua obra alimentaram vários caminhos opostos.
Mallarmé, que definiu o poeta como alguém com rosto
de anjo e mãos de lavadeira, foi secundado por Leyla Perrone-Moisés,
em Inútil poesia: "O 'anjo' era porco e mal-educado;
o 'rebelde' era o primeiro da classe; o 'marginal' pedia a aprovação
do establishment literário, que o reconheceu e homenageou
de imediato; o 'comunista' teria apenas usado essa máscara
para fins interesseiros; o 'aventureiro' posterior era um empregado
exemplar, obediente, poupador e bastante aborrecido com a vida que
levava; o 'inimigo da família' compactuava com a mãe-megera
para sabotar o casamento do irmão com uma mulher inconveniente...".
Longe de atrapalhar, essas incongruências só o ajudaram,
talvez porque ao mesmo tempo em que ele revelava o aborrecido e
uniforme mundo burguês, se prestava para ser o rebelde radical
que nem todos queriam ou podiam ser. E isso foi, em alguma medida,
poeticamente romântico.
Ao lado de Lautréamont, poeta ainda mais
desconhecido que ele durante o 19, Rimbaud é citado como
referência no primeiro Manifesto Surrealista, de 1924. Suas
biografia e bibliografia são igualmente responsáveis
por isso: "Rimbaud é surrealista na prática da
vida e no resto", afirma André Breton. Daí para
frente, sua obra será aos poucos estudada e integrada completamente
ao cânone modernista.
Em 1931, em O castelo de Axël, Edmund
Wilson tenta entender a poesia moderna e vê-se compelido a
buscar em Rimbaud e Villiers de l'Isle Adam algumas das origens
da explosão poética que "explicaria", ou
teria possibilitado, obras como as de Gertrude Stein, Eliot e Joyce.
Para um leitor de língua inglesa como ele, essa pesquisa
possuía um sentido maior, pois não era apenas uma
tentativa de compreender influências, antepassados e sucessores
literários, mas de tentar explicar o que havia na literatura
francesa do final do século 19 que foi descoberto por esses
que seriam os primeiros grandes autores do século 20. E é
claro que ele não chega a uma conclusão única
(na verdade afirma que tudo estava lá, na poesia inglesa,
mas com menos estrondo...), mas, ainda uma vez, a vida de Rimbaud
é relevante, por representar uma opção diferente
da que fez a maioria dos outros autores — e Wilson também
o compara especialmente ao personagem recluso de Villiers, Axël
—, cloróticos que renunciaram ao mundo exterior.
Se a vida o catapultou para o panteão
dos mitos durante o século 20 (seu rosto pode ser encontrado
em camisetas ao lado do revolucionário Che Guevara ou do
guitarrista Jimi Hendrix), sua obra se garantiu entre os autores
que forjaram a liberdade poética desse tempo. Mesmo Mallarmé
já tinha falado da força — entre o perverso
e o exótico — do seu verso. De modo geral o enquadraram
entre os simbolistas, principalmente por violentar o ritmo e a métrica
da poesia francesa indo até o poema em prosa: Iluminações
e Uma temporada no inferno são seus textos mais violentamente
modernos. Nessas obras, no entanto, a clareza e a lógica
sintática é que seriam abandonadas, atendendo ao chamado
da época: "dar um sentido mais puro às palavras
da tribo".
Nesse processo de corrupção da
linguagem aparecem a despersonalização moderna: o
"eu" que é um outro, a defesa do feio como motivo
de arte, o tratamento imoderado entre imaginação e
realidade, a cidade como espaço preferencial, a ridicularização
das tradições. A caracterização de simbolista
não é unânime: apesar do poema em que dá
cores às vogais, seguindo um pouco a ideia das correspondências
de Baudelaire, a poesia de Rimbaud não cabe facilmente em
nenhuma categoria. A coerência que ele talvez tenha para oferecer
seja o violento e idêntico vigor com que regeu ora a vida,
ora a obra.
*Sandra M. Stroparo é professora de Literatura na Universidade
Federal do Paraná.
GAZETA DO POVO
Curitiba
30/03/2010
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