HOMENAGEM
A WILSON MARTINS
Miguel
Sanches Neto
Em
uma de suas teses sobre a técnica da crítica, Walter
Benjamin diz: “A posteridade esquece ou celebra. Só
o crítico julga no rosto do autor”. Desde 1942, quando
iniciou suas atividades no jornal O Dia, de Curitiba, até
outubro de 2009, na Gazeta do Povo e no caderno Ideias, do
Jornal do Brasil, Wilson Martins (1921-2010) veio julgando
a literatura brasileira. E muitos autores lhe viraram o rosto por
causa disso.
Morrendo
solitariamente (apenas no conforto da família), e sendo velado
por um pequeno grupo de amigos, Wilson Martins manteve a coerência
de uma trajetória. Não escrevia por amizade aos autores,
mas por amizade aos livros. E é isso que faz de seu legado
crítico não apenas o maior conjunto de análise
de obras brasileiras como o mais rico por sua isenção,
por sua coragem de avaliar obras no calor da hora.
Seu
ensaio maior, História da inteligência brasileira,
em sete volumes, acompanha ano a ano a produção editorial
brasileira (toda ela, não apenas a literária), do
início da vida cultural do país até os anos
de 1960. Esta obra-mestra é complementada pelas críticas
reunidas em Pontos de vista (15 volumes, de 1954 a 1999)
e por O ano literário (dois volumes, a partir de 2000).
Também escreveu outros títulos importantes, mas mesmo
assim me disse ele, tempos atrás, guardar um projeto não
realizado: escrever um livro-síntese chamado Os brasileiros.
De certa forma, ele acabou escrevendo esta obra pela soma de todas
as suas análises sobre o que somos como povo.
Sua
produção está aí, fala e continuará
falando por si só, numa demonstração de seriedade,
de coragem e de amor pela cultura nacional. Ela não deixará
que ninguém lhe tire o posto de maior crítico literário
de toda a história do país, porque foi como crítico
literário e como leitor profissional que ele construiu uma
obra. Assim como um Rubem Braga deu à crônica uma centralidade
literária, Wilson elevou a crítica militante, esta
feita para acompanhar os lançamentos, a uma categoria intelectual
que ela ainda não atingira no país.
Mais
desconhecido era o homem que havia sob o crítico, tido como
dono de posturas rigorosas, avesso às expansões emotivas.
Wilson Martins era assim, mas também não era nada
disso. Nossas trajetórias se cruzaram por acaso, e a amizade
dele me polinizou – não acho outra imagem. Houve um
contato intelectual e humano tão intenso que floresceu em
mim o crítico e o escritor. Na hora de escrever, imaginava
o que o Wilson pensaria sobre aquilo. Muitas vezes, tinha certeza:
ele ia detestar; mas mesmo assim eu escrevia, recebendo o silêncio
(sinal de que odiara), umas palavras vagas (então não
lhe era tão estranho assim) ou um comentário positivo.
Fui desta forma delineando minha literatura em contraste com as
opiniões do mestre. Não correspondi ao que ele entendia
por grande literatura, mas criei zonas de contato com as suas concepções.
Sem
esta convivência com a obra e com o homem, eu teria seguido
caminhos literários totalmente diferentes. Mas, se divergíamos
sobre alguns pontos da literatura, e talvez por isso mesmo, conseguimos
manter um diálogo muito intenso. Nunca me senti no papel
de discípulo, embora tecnicamente o fosse, mas no de alguém
que debatia com um outro “oficial do mesmo ofício”
– expressão que Wilson frequentemente usava. Foi ele
quem me deu a carteira profissional de crítico e escritor,
reconhecendo-me nestas funções. E eu me sentia mais
importante do que de fato era nos momentos em que conversávamos.
E fui
criando uma admiração irrestrita ao homem. Se muitos
outros escritores com quem convivi se revelavam em suas mesquinharias,
ele crescia por sua generosidade intelectual. Das qualidades de
Wilson Martins, a que mais me espantava era sua capacidade para
o trabalho. Levantar muito cedo, barbear-se, vestir-se como se fosse
para sair e começar o seu dia de leituras. Lia até
perto das 11 da noite, quando ia dormir. Se dormisse antes, era
porque o livro não prestava – eis sua ideia de grande
literatura: aquela que nos mantém despertos.
Eu
admirava ainda o seu apetite. Nos almoços de que participei
(na companhia principalmente de seus amigos mais próximos
– Norton Macedo, Tato Taborda e Eduardo Virmond –, espantava-me
com a vitalidade de quem dava conta de pratos que nenhum médico
recomendaria para alguém da idade dele. Este mesmo apetite
ele tinha pelos livros, pela vida, pelas notícias. O bom
humor de Wilson Martins também surpreendia. Eu o imaginava,
antes de conhecê-lo pessoalmente, um intelectual sisudo. Tinha
convivido com os maiores escritores brasileiros do século,
havia morado 30 anos nos Estados Unidos, lecionando literatura,
e escrevera aqueles livros imensos… Só podia ser um
chato. Mas ao lado do Wilson Martins reinava sempre a diversão
refinada.
Contou-nos,
entre tantas histórias, que, depois de um jantar em Salvador,
queria ver um terreiro de umbanda, por pura curiosidade sociológica,
e que um grupo o levou ao local. Mas era preciso subir um barranco
e isso se tornara impossível para ele – então,
Jorge Amado, que estava presente, o carregou nas costas, morro acima:
“Foi quando a crítica literária andou a cavalo
na literatura brasileira”, concluiu ele, rindo. Passagens
divertidas como esta encantavam todos os presentes.
Mas
nada era mais marcante neste homem do que a integridade intelectual.
Nunca deixou de escrever o que achava que devia ser escrito, mesmo
que isso lhe custasse (e na maioria das vezes custou) ser perseguido
por pessoas bem postas – perdeu empregos, recebeu ataques
violentos, foi difamado. Mesmo assim, nos 15 anos de nossa convivência,
nunca o vi reclamar de ninguém. E se esta pessoa que o prejudicara
escrevesse um bom livro, receberia dele, com certeza, um artigo
consagrador. Mas, se o livro fosse ruim, viria um de seus julgamentos
definitivos.
Wilson
Martins fez com que eu ousasse ser escritor. E por este erro ele
não será perdoado.
caderno
Idéias
JORNAL DO BRASIL
08/02/2010
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