UMA HISTÓRIA DO CHOQUE ENTRE ECONOMIA
E LIBERDADE
Reunião de três ensaios apresenta Michael Oakeshott
ao leitor brasileiro
Mary del Priore
Professora de História da USP e da PUC-RJ
Sobre a história
Aos
18 anos, ele escreveu um artigo para a revista do colégio onde estudava,
o rigoroso Saint George's. O título? ''Da experiência de ensinar
história''. Desde então, Michael Oakeshott estabeleceu um longo
diálogo com o século 20, diálogo marcado pelo fim da República de
Weimar, a emergência do nazismo, a Guerra Fria, maio de 1968, a
queda do Muro e as incertezas que varreram as ciências a partir
dos anos 80. Sobre a História, reunião de três ensaios publicados
pela primeira vez em Londres nove anos após sua morte, em 1990,
resume as preocupações que marcaram tanto a crítica do seu tempo
quanto seu itinerário de intelectual. Pois é exatamente a história
do sangrento século 20 que dá unidade e originalidade a seu pensamento.
Unidade porque todos os seus artigos e livros
a ela se prendem, mesmo quando transcendem as clivagens de disciplinas
e gêneros, tentando pensar os vários setores das sociedades modernas:
as relações sociais, os regimes políticos, as discussões ideológicas
ou até a poesia e a literatura. Sua intensa produção investiu em
descrever e compreender a maneira como se combinaram as diversas
dinâmicas das forças econômicas e sociais com a liberdade dos homens.
Et pour cause, pois Oakeshott viveu as duas guerras, a violência,
os heróis, os genocídios e os totalitarismos delas decorrentes.
Duramente confrontado com a partilha do mundo, mas também com o
estilhaçamento dos saberes, o cientista inglês optou pela valorização
do indivíduo, de sua autoconfiança e direitos, de seu pensamento
prático. Sua abordagem está centrada no papel que acorda à liberdade
no destino do século, bem como no status desta liberdade; fundado
na análise política e histórica. Um tema, enfim, enraizado nas dramáticas
condições de vida de uma época.
Mas quem é este pensador de renome internacional
ainda desconhecido do público brasileiro? Nascido em 11 de dezembro
de 1901 em Chelsford, condado de Kent, Michael Joseph Oakeshott
fez seus primeiros estudos de 1912 a 1920 no já mencionado Saint
George's, uma escola quaker. De 1920 a 1926 esteve no Gonville and
Caius College, em Cambridge, onde, depois de incursões a Tübingen
e Marburg para novos estudos, voltou para assumir o posto de professor-assistente
de História. No mesmo ano em que Gilberto Freyre publicava Casa-grande
& senzala, que a França colhia uma das melhores safras de Romanée
Conti, que Fulgêncio Batista subia ao poder, o inglês publicava
sua primeira obra filosófica, Experience and its modes, seguido,
em 1939, por Social and political doctrines of Europe. Os tempos
eram terríveis: a Europa assistia impotente à falência das estruturas
liberais, as classes médias se proletarizavam, greves e movimentos
pró-ditaduras se multiplicavam. Pior: o medo do ''perigo vermelho''
era crescente e o Estado liberal e democrático parecia incapaz de
resolver tanto a crise econômica quanto o avanço socialista. O fio
condutor de seus trabalhos era um só: investir contra os ''racionalistas'',
pessoas que pensavam poder aplicar esquemas intelectuais ao mundo
político, solucionar problemas concretos à luz de generalizações.
Atacava, assim, o marxismo de intelectuais como Bernstein, Kautsky
ou Max Adler, defensores de teses fortemente condicionadas pelo
agnosticismo kantiano, crentes na ''neutralidade'' científica e,
portanto, na existência de uma teoria social absolutamente não-subjetiva.
Não contente em pensar sobre história, Oakeshott
foi um dos seus protagonistas. Oficial do exército britânico, serviu
no mais sangrento teatro da Segunda Guerra e nos campos de batalha
da França e da Alemanha, de 1942 a 1945. Ao voltar a Cambridge,
ele fez uma primorosa edição crítica do Leviatã, de Hobbes, e fundou
o periódico The Cambridge Journal, entrando alguns anos depois para
o então recém-fundado Nuffield College, em Oxford. Dizem as más
línguas que só não ocupou a cadeira de ciência política em Cambridge
por causa de seu amor às corridas de cavalos, paixão traduzida no
simpático texto A New Guide to the Derby: How to Pick a Winner.
Ora, Dostoievsky era viciado no jogo de roleta... Em 1951, Oakeshott
irá ocupar, na London School of Economics, a cadeira de um dos mais
proeminentes marxistas ingleses, Harold Larski, posição na qual
permaneceu até sua aposentadoria em 1967.
Oakeshott manteve-se muito ativo até o final
da vida, merecendo inúmeras edições póstumas de suas obras. Nestes
três vigorosos ensaios de Sobre a história, ele se debruça sobre
o conhecimento da matéria histórica, examina questões referentes
à autoridade política e suas relações com a sociedade e usa a fábula
da Torre de Babel para pensar o indivíduo e o coletivo. Exemplarmente
publicada pela Topbooks em convênio com o Liberty Fund, em tradução
primorosa de Renato Lemos, acrescida de um prefácio de Evaldo Cabral
de Mello que o situa na constelação dos grandes pensadores políticos
de nosso tempo, esta obra descortina questões pouquíssimo freqüentadas
por nossos historiadores. No primeiro ensaio, Oakeshott busca definir
o conceito de história e entender a coerência da disciplina. Perde
tempo quem procurar aí as interrogações que açodam a historiografia
atual, historiografia voltada para a narrativa, os indivíduos e
sua cultura, as práticas cotidianas, o imaginário ou o lugar das
minorias.
Espremido entre os ícones da escola anglo-saxônica
marxista, como Eric Hobsbawm, Perry Anderson e Edward P. Thompson
— cujos trabalhos enfocaram ''a história vista de baixo'' ou buscaram
uma ''lógica histórica'' na perquirição adequada dos documentos
— e os clássicos da maior historiografia do século XX, a francesa,
com sua renomada École des Annales, o autor produziu idéias singulares.
Ele sugere que se busque no que chama de ''passado histórico'',
passado informe, complexo e não evidente, certa compreensão por
meio da narrativa. Não cabe ao historiador, explica, debruçar-se
sobre os tempos idos para exumá-los como se faz numa lição de anatomia,
mas, sim, compreender ''homens e eventos mais profundamente do que
foram compreendidos na época em que viveram e aconteceram''. Por
trás da tese meio óbvia, sua preocupação maior é a de sublinhar
que a história nada pode pelo presente, uma vez que ela é informe,
ambígua e mutante. Olhar para trás, perscrutar o ontem em nada remediaria
o hoje imediato.
No segundo ensaio, o autor discorre sobre um
de seus temas preferidos: as relações humanas e as preocupações
associativas como fenômenos de civilização. Dialogando com o clássico
do holandês J. Huizinga, Homo Ludens, desenvolve a idéia de que
a moral e os limites, tal como nos jogos, são responsáveis pelos
fenômenos civilizatórios mais importantes. No terceiro, ''A Torre
de Babel'', usa um conceito que lhe é caro, o de compaixão — não
no sentido cristão, mas pagão — para tratar daquilo que, na condição
humana, não é fruto de escolha ou opção. A fábula lhe permite discorrer
sobre a disputa para chegar aos céus sem a ajuda dos deuses, revelando,
simultaneamente, a impiedade daqueles que não admitem a diferença
nem a vida fora do mundo que desejam exclusivamente para si, mundo
à sua imagem e semelhança. Sente-se aí a pluma do erudito que, para
além de criticar o excessivo individualismo de seus contemporâneos,
sua ''volubilidade e vulgaridade moderada'', reconhece, também,
a atualidade de Babel como ''uma cidade atribulada pelo alvoroço
de obter e gastar''. A figura patética e isolada de Nimrod faz pensar
no atrativo dos profetas modernos, afogados na própria logorréia,
que, se por um lado valorizam o trabalho e o bem-estar material,
acabam por encontrar-se sós, diante de seus próprios destinos, sem
sentido ou horizonte para a vida. As escolhas pessoais sobrepondo-se
aos destinos coletivos só fazem, como diz ele, ''estender as fronteiras
do inferno''. É este, certamente, o ensaio que mais o aproxima de
autores coetâneos como Sartre, Camus ou Heidegger, que também pensaram
o desespero, o niilismo e o absurdo.
Michael Oakeshott está longe das preocupações
que hoje incidem sobre a disciplina: dar prioridade a uma problemática
que interrogue a documentação, pois não há olhar sobre as sociedades,
passadas e contemporâneas, sem condição de saber o que procuramos
ou por que procuramos. Por outro, sua intuição segue absolutamente
válida: não há história que seja o resultado calculado de certas
manipulações, não há ciência feita de leis ou metáforas de tipo
biológico capazes de condenar grupos humanos a nascer, crescer e
morrer, nem existe razão cujo deslocamento imponha às sociedades
evoluções necessárias. Para Oakeshott, como para muitos de nós,
mesmo depois de tantas crises epistemológicas como o desconstrutivismo
ou o relativismo, a história segue uma aventura intelectual inesgotável.
Idéias
JORNAL DO BRASIL
Rio de Janeiro
31/01/2004
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