O BRASIL DA IBERO-AMÉRICA
Livro analisa quase 40 anos de relações
do país com a
Espanha democrática, obra conjunta de conservadores e liberais
Francisco Doratioto
É crescente a presença da
Espanha no Brasil. A evolução das relações
políticas e econômicas entre os dois países,
a partir da redemocratização espanhola, é o
objeto do livro As duas Espanhas e o Brasil (Topbooks, 396
páginas), escrito por Tarcísio Costa. A precisão
e a qualidade da análise que caracterizam a obra se explicam
pelas qualificações do autor: é doutor em teoria
política pela Universidade de Cambridge e diplomata de carreira,
tendo servido na embaixada brasileira em Madri. O trabalho é
enriquecido por prefácio do ex-presidente Fernando Henrique
Cardoso e posfácio de José Viegas Filho, ex-ministro
da Defesa, que também foi embaixador do Brasil na Espanha.
O conteúdo do livro vai além do
que sugere o título, pois, apesar de se concentrar no Brasil,
analisa ainda as políticas da Espanha democrática
quanto à América hispânica e à opção
pela Europa. É analisada a construção do consenso
e o surgimento do dissenso, em relação à política
externa, por parte “das duas Espanhas” – uma,
herdeira do tradicionalismo e conservadorismo católicos,
corporificada no Partido Popular, e, outra, com raízes na
modernização laica e liberal, representada pelo Partido
Socialista Operário Espanhol (PSOE), de caráter social-democrata.
Após a morte do ditador Francisco Franco,
em 1975, no processo de redemocratização houve consenso
sobre a prioridade da integração com a Europa. Alerta
Costa que não se deve ver esse consenso de modo estático,
mas sim como um processo que perdia ou ganhava impulso de acordo
com a conjuntura. Foi esse o instrumento para que a política
externa da Espanha democrática “adquirisse abrangência,
estrutura e conteúdo, tendo como eixo o esperado retorno
à Europa”.
À prioridade europeia se subordinou a
criação de uma “diplomacia latino-americana”
por parte dos governos espanhóis. Esta evoluiu da noção
“irrealista” de que a Espanha seria ponte entre a América
Latina e a Europa, do primeiro governo democrático, de centro-direita,
de Adolfo Suárez (1976-1981), para o conceito de comunidade
ibero-americana de nações. Esta foi desenvolvida por
Felipe González, o socialista que sucedeu Suárez em
1982, e que buscou legitimar a maior presença espanhola no
espaço latino-americano com o apoio aos processos de redemocratização
na região e ao desempenhar papel de moderador na crise política
centro-americana. A efetivação de uma comunidade ibero-americana
de nações, incluindo Brasil e Portugal, contou com
o apoio do rei Juan Carlos e traduziu-se na prática dos encontros
de cúpula de chefes de Estado e governos, sendo o primeiro
realizado em 1991. Ademais, ganhou a Ibero-América importância
econômica para a Espanha, com o aumento crescente dos investimentos
espanhóis na região, como parte da estratégia
de internacionalização das empresas espanholas.
Felipe González deixou o poder em 1996,
substituindo-o José Maria Aznar, do conservador Partido Popular
(PP), fundado em 1989, e que polarizara com as posições
dos socialistas. Foi sob o governo de González que a Espanha
se modernizou, ingressando na Comunidade Econômica Europeia
(1986) e aproveitando as oportunidades que esta oferecia. Aznar
colheu os frutos da ação governamental dos socialistas,
mas tomou medidas para diferenciar-se politicamente deles. Refletindo
a polarização entre o PP e o PSOE na política
interna, houve rompimento do consenso na área externa ao
aderir Aznar à política americana em relação
ao Iraque, adesão que ia contra a postura da União
Europeia.
Lembra Costa que, enquanto o PSOE tinha a vocação
europeia inscrita na sua identidade, pois tivera apoio dos socialistas
europeus na época da ditadura franquista, o PP não
possuía essa história e, ao ocupar o poder, optou
por manter relação pendular entre a Europa e os Estados
Unidos. Ao atrelar a Espanha à estratégia de segurança
americana, Aznar contaminou o relacionamento do seu país
com parceiros latino-americanos. Anteriormente, ele já rompera
o consenso espanhol sobre a América Latina, ao tomar posições
claramente diferentes daquelas da diplomacia dos antecessores socialistas:
afastara-se do regime cubano, não se solidarizara com a Argentina
na crise financeira de 2001 e mantivera atitude ambígua quando
da tentativa de golpe contra Hugo Chávez em 2002.
Os socialistas retornaram ao poder em 2004 e,
demonstra o livro, o novo presidente do governo, José Luis
Rodríguez Zapatero, alterou a política internacional
espanhola. Em relação à América Latina,
Zapatero procurou aparar as arestas que Aznar criara. Quanto ao
Brasil, isso não foi necessário, pois Aznar conviveu,
durante seu período de governo, por seis anos e oito meses
com o presidente Fernando Henrique Cardoso e por quinze meses com
o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, sem que a mudança
dos personagens do lado brasileiro repercutisse na orientação
da diplomacia espanhola ou criasse tensões nas relações
bilaterais. Constata Costa que Aznar foi moderado e evitou dramatizar
as diferenças entre suas posturas políticas no plano
internacional e aquelas adotadas pelos governos Fernando Henrique
e Lula. Acrescente-se que nas análises de Aznar (Folha
de São Paulo, 26.10.03) e de Zapatero (El País,
10.12.09) o presidente Lula deu continuidade ao caminho aberto por
Fernando Henrique, não havendo, portanto, mudança
que exigisse reposicionamento da diplomacia espanhola.
Costa explica a moderação de Aznar
pela necessidade de não se contaminar o ambiente dos negócios,
que iam de vento em popa para as empresas espanholas, e, mais, por
estar no Brasil a segunda maior fatia do total do capital espanhol
investido no exterior. Conclui o autor ser remota a possibilidade
de que futuros governos espanhóis não atribuam relevância
ao Brasil, pois “o capital econômico e também
político, acumulado na relação bilateral, é
demasiado vultoso para ser ignorado”.
VALOR ECONÔMICO
23/12/2009 |