REGRESSO À PÁTRIA PROVISÓRIA
DA POESIA
Após passar uma década sem publicar
novos poemas, Espínola retoma lírica amorosa de sutilíssimo
toque
André Seffrin
Desde Beira-sol (1997), ou seja, há dez
anos, Adriano Espínola não publicava nova reunião
de poemas. Nesse tempo, ou melhor, a partir de 1996, andou republicando
livros antigos, revistos e/ou reformulados, e lançou As
artes de enganar: um estudo das máscaras poéticas
e biográficas de Gregório de Mattos (2000).
Beira-sol é, sem nenhum favor, dos livros
mais belos de nossa lírica moderna em língua portuguesa,
e acabou por conduzir o autor ao extremo de suas indagações
poético-existenciais. Pergunta que me fiz desde aquela época:
que caminhos o poeta vai percorrer depois desse livro?
Adriano Espínola aí amargou longas
esperas, dissimuladas em reedições de livros antigos,
a exemplo de O lote clandestino (2002). E agora,
ei-lo de novo, a compor suas dúvidas de animal humano e de
poeta, com a força que se espera dele, em mais uma de suas
viagens de regresso à praia (ou pátria) provisória
da poesia.
Formalmente, ele costuma trabalhar com a mesma
naturalidade o poema curto, à maneira de Drummond, e o poema
longo, de extração whitmaniana. Mas optou, nos dois
últimos livros, pelos poemas mais sintéticos, com
intensidade lírica e por vezes alimentados por um ludismo
epigramático. Parece estar em seu grande momento, uma vez
que, no ir e vir dos poemas longos – vide "Táxi"
e "Metrô", reunidos no volume Em trânsito
(1996) –, não consegue evitar certos artifícios
verbais ao valorizar visualmente, de passagem, palavras que não
exprimem o esperado sentimento poético nem alcançam
o efeito desejado no interior do poema. Ao contrário, nas
pequenas cápsulas verbais de Beira-sol e
Praia provisória não andará
distante dos melhores poetas do seu tempo, dentro dessa família
inquieta e febril que é a sua, ou seja, a dos líricos
de hoje e de sempre. É verdade que parte da crítica
discorda deste meu ponto de vista.
Ora, nos primeiros livros – principalmente
em Fala, favela (1998) e O lote clandestino
– Adriano Espínola ainda se deixava encantar pelo poema
figurativo, dando peso e valor excessivo a determinados versos ou
palavras, à sombra dos ventos uivantes da poesia de ânimo
social e/ou concretista. Praia provisória o redime desta
e de outras incursões pouco felizes – não apenas
no aspecto formal, mas de fidelidade à sua pegada mais genuína,
isto é, a lírica amorosa de sutilíssimo toque,
de pequenas iluminações verbais no branco da página.
Assim, os poemas curtos e parte dos poemas longos que escreveu antes
de Beira-sol poderão, no futuro, ser encarados
como experimentos circunstanciais frente ao que se configurou em
sua obra posterior.
De fato, ao tomar precavida distância das
"marés montantes dos minutos" que o impulsionaram
em "Táxi" e "Metrô", Adriano Espínola
passou a catalisar o que possui de melhor. E o que seria esse melhor?
Ora, a plasticidade orgânica que imprime à matéria
de cada poema, o cuidado que demonstra ter com a concavidade do
silêncio entre uma palavra e outra e com a modulação
de voz que cada poema exige de modo diferente, tudo isso aliado
ao domínio extraordinário das formas fixas, entre
as quais o soneto, para o qual se preparou como poucos de sua geração.
Também como poucos de sua geração,
em Praia provisória ele se revela ainda
um autor mentalmente afinado com as referências à poesia
universal. Como quem estivesse a passar a limpo seus cadernos, e
não apenas os seus - também os cadernos dos poetas
que devemos homenagear, assim como os daqueles que devemos apenas
lembrar para não repetir. Com a necessária visão
retrospectiva, procurando reduzir (se é que cabe o raciocínio)
de maneira amplificada esse passado que o acompanha na realização
de cada poema, Adriano Espínola encarou frontalmente o seu
drama. Drama que é, afinal, o de todo grande poeta: exorcismar
obsessivamente velhos fantasmas – que o digam os poemas da
seção ''Os hóspedes" –, seus e de
outrem, para compor, enfim, os poemas que a todo instante podem
reinaugurar o mundo e a poesia.
Com essa alta consciência do oficio, ele
escreve poemas como "Verão", que, na abertura do
livro, converte-se em uma iluminura que tangencia a criação
de mestres do nível de Joaquim Cardozo e Mário Quintana:
"O sol é grande e breve./ A praia e as aves, livres./
A tua carne, alegre. / Sim, sobre ela eu lerei todos os livros".
Destacaria muitos outros poemas que se fixam
na memória com suas gemas irrepetíveis – "Culinária",
“A cebola", "Quíron", "Dante",
"Os mortos", "Pacto" – sem abdicar, é
claro, de nenhum outro ao longo do livro. Parodiando Vieira, podemos
dizer que Adriano Espínola prefere ver as palavras não
como palavras, mas como estrelas. E é com elas que ele prepara
silenciosamente, todos os dias, a sua lição de coisas:
"Sou todo ali:/ a outra coisa e a coisa-em-si,/ neste agora
múltiplo e uno,/ luz concentrada/ entre o mito e o minuto,/
o cálculo e a loucura,/ a flor e o fruto,/ juntos:/ amorosamente.
/ Aqui./ no presente./ Mais nada". Sem dúvida, uma iniludível
profissão de fé.
Publicado na revista Entrelivros, março
/ 2007
Nota: Todos os livros do poeta acima citados foram editados pela
Topbooks.
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