AGUDEZAS E ENGENHOS DE UM BARDO
Em "Praia Provisória",
Adriano Espínola demonstra virtuosismo de quem domina engrenagens
da tradição lírica
Manuel da Costa Pinto
EM "PRAIA PROVISÓRIA", de Adriano
Espínola, o sol é presença tão intensa
quanto fugaz: domina a primeira parte de um livro composto de cinco
seções, dando a impressão de um hedonismo descompromissado,
praiano. Ainda nessa seqüência inicial, porém,
aflora aquilo que é característico do autor: um virtuosismo
de quem domina as engrenagens da tradição lírica,
temperado por uma batida seca e ritmada, que parece extraída
do cantador popular. Da fusão desses elementos – lirismo
solar, erudição, oralidade persuasiva – surge
uma poesia cheia de "agudeza e engenho", expressão
associada ao barroco e que não seria inadequado aplicar a
esse poeta e ensaísta que, em "As Artes de Enganar"
(Topbooks), analisou a obra de Gregório de Matos.
Em duas partes do livro, algumas destas características
aparecem isoladas das demais – e por isso correspondem a momentos
menos intensos, pois limitados a um único aspecto desse conjunto
em geral orgânico. Isso ocorre sobretudo em "Os Hóspedes",
onde Espínola escreve "à maneira" de diferentes
filósofos ou poetas (de Heráclito até Borges)
e se apropria da fala de figuras mitológicas (Édipo,
Ulisses).
São versos notáveis pela capacidade
de glosar, com leveza e humor, tanto o serpentário retórico
de Camões ou do padre Vieira quanto o estilo epigramático
de Sousândrade – evocado num soneto quase monossilábico
em que as palavras desmembradas celebram "O Guesa Errante",
épico vertiginoso do poeta maranhense: "yea!/ na / lín/
gua// por/ tu/ guesa/ a// por/ tou/ er// rante/ um/ guesa".
Em outra seção, "Armadilha
para Orfeu", os poemas obedecem a uma toada que remete tanto
aos gêneros satírico-picarescos quanto às pelejas
nordestinas: "Do fim ao início,/ eis meu ofício://
sou bucaneiro/ (bardo ligeiro).// Trafico sons,/ pilho sentidos,//
finjo de bons/ os teus ouvidos" – escreve ele no maior
poema do livro, vestindo a máscara do burlador que faz pilhéria
de si e pilhagem da obra alheia.
Em ambos os casos, temos a dicção
cerebral de quem brinca com diferentes modulações.
Esses exercícios trazem embutido, todavia, um programa estético
que consiste em cifrar o sério no jocoso, o dramático
no paródico; de captar, pela multiplicação
das formas poéticas, o pluralismo da experiência moderna.
Isso se realiza, por exemplo, nos poemas reunidos
na seção inicial, intitulada "Maramar".
Aqui, os quatro versos de "Verão" ("O sol
é grande e breve./ A praia e as aves, livres./ A tua carne,
alegre.// Sim, sobre ela eu lerei todos os livros.") invertem
o célebre "Brisa Marinha", de Mallarmé ("a
carne é triste, ai!, e já li todos os livros"),
mas o motivo luminoso logo desliza para os drummondianos "Negra"
e "Prego" (paráfrase de "Confidência
do Itabirano"), e daí para a imagem de um "Meio-Dia"
que tudo calcina e torna provisório: "estaca fincada/
(...) solidão a pino".
FOLHA DE S.PAULO
04/11/2006
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