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CRÍTICA VIVA

Miguel Sanches Neto

Um livro pode interessar como fato jornalístico, político ou literário, ganhando (ou perdendo), em função disso, espaço na mídia. Não havendo mais crítica literária sistemática nos meios de comunicação, a principal face de um lançamento é a jornalística. Escreve-se (ou não) sobre uma determinada obra não porque ela tenha valor como literatura, mas por se tratar de um acontecimento. Um músico famoso, por exemplo, produz um romance e não é possível, do ponto de vista da comunicação, deixar de divulgar este seu novo trabalho. Assim, a força como notícia de um livro é que determina sua centralidade cultural. Tal potencial pode vir do renome do autor, mas também de determinadas temáticas, que funcionam como ganchos: tragédias pessoais, referências a famosos, posturas pretensamente revolucionárias, invenção de linguagem, críticas a isto ou a aquilo etc. – enfim, as periferias da arte.

Igualmente não-literária é a motivação política, de pertencimento ou de excomunhão. Escreve-se sobre um livro porque ele reafirma uma visão do mundo hegemônica. Ou se exclui o livro, quando falta coragem para destruí-lo, porque ele nega as certezas do momento. Nesta mesma esteira, há ainda a crítica dos compadres, que poderíamos chamar de ecológica, em que os membros de um clã literário distribuem elogios de autoproteção. É principalmente contra esta cordialidade calculada que o poeta e crítico Felipe Fortuna se opõe em um volume de pequenos ensaios muito originais: Esta poesia e mais outra (Topbooks).

Indo da linguagem aforística à teatral, do artigo de opinião ao ensaio, de autores canônicos a jovens poetas, Felipe mapeia o campo minado da cultura brasileira. Um de seus aforismos resume a atual tendência para a mediocridade: “O poeta mais ou menos mostra seu poema a outros poetas mais ou menos. Juntos, decidem publicar uma revista e tudo termina sem mais nem menos” (p. 223). O crescimento da oferta de livros fez com que se criassem microcampos de poder literário altamente excludentes, em que aparecem apenas os afiliados de uma linguagem, de uma ideologia ou de um credo artístico. Eis o principal problema sofrido hoje pelo autor avesso à vida gregária.

Com uma coragem rara, Felipe Fortuna aponta equívocos de nomeada, analisa acertos, mas principalmente desmonta os mecanismos grupais de consagração. E esse é um exercício intelectual em seu nível mais elevado, pois não existe crítica sem julgamento, sem hierarquização literária, sem valoração da amplitude de uma obra contra a sua leitura sectária. Felipe Fortuna insiste, ao longo de todo o livro, nessa postura judicativa. Mesmo quando admira um autor, e isso fica evidente em seu texto, ele não foge aos problemas da obra, não para negá-la, mas para chegar a uma melhor compreensão dela. São ensaios acima do elogio fácil, portanto.

Sua escrita cheia de energia cria uma crença na crítica de jornal, implícita em cada linha acalorada de seus artigos e escancarada em alguns deles: “O trabalho da resenha e da crítica, em que pese o eventual menosprezo de quem o contrapõe ao trabalho da criação, tem a mesma importância da recensão entre acadêmicos (peer review), ou da orientação de tese ou do parecer editorial” (p. 175). Se a importância é a mesma, cada um desses gêneros cumpre funções distintas num sistema de complementaridade. A crítica de jornal se destaca por seu poder de fazer da literatura algo culturalmente vivo e estimulante. Felipe lista suas qualidades vitais: “o primado da opinião, a ênfase analítica e a tendência ao debate” (p. 182), componentes que distinguem Esta poesia e mais outra, onde a literatura se manifesta acima do jornalístico e do político.

GAZETA DO POVO
Curitiba
08/05/2011

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