FELIPE FORTUNA POSTO EM XEQUE
A respeito do livro ESTA POESIA E MAIS OUTRA
- crítica literária, de Felipe Fortuna (Topbooks,
2010, ISBN: 978-85-7475-186-3)
Antonio Miranda
Felipe Fortuna é poeta e diplomata, ensaísta e colunista
de literatura. Sua crítica literária aparece no suplemento
Ideias & Livros do Jornal do Brasil, atividade hoje meio
rara no país. Acompanho os textos dele sempre com interesse,
seja na versão impressa ou quando ele divulga através
de releases a seus amigos e seguidores pela web. No orelhão
da obra, o poeta Antonio Cícero expressa sua admiração,
mas ressaltando que discorda de alguns de seus juízos. Felipe
mesmo confessa, na apresentação do livro, sua "tendência
à provocação", sua veia irônica.
Nada mal, diante dessa mania generalizada de elogios cruzados entre
autores, fenômeno que ele mesmo critica em relação
a determinados grupos e suas publicações impressas
e eletrônicas. Não é de hoje que isso acontece.
*
Felipe insurge-se contra o "texto sem opinião".
Sem assumir o papel deliberado de promotor cultural e de adotar
o estilo às vezes didático do Mário Faustino,
e sem chegar aos extremos culteranos e ostensivamente eruditos
de José Guilherme Merqiuor, Felipe Fortuna dá seu
recado de forma mais contundente, e arriscando uma veia crítica
que deveria sempre fazer parte da crítica literária.
Crítica em seu sentido epistemológico e interpretativo.
Deplora, citando Dana Gioia, a tendência
de muitos poetas de escreverem para seus pares ("condenados
a lerem a si mesmos"), num diálogo de seita ocultista,
de igrejinha de província. E deplora a presunção
de outros que se anunciam renovadores da linguagem poética,
mas que apresentam uma prosa diluída, que "exibe influências
da canção popular". Felipe poderia ter chamado
a atenção para um círculo vicioso de poetas,
de formação acadêmica, ostentando títulos
universitários, que usam a poesia como ilustração
de suas teorias literárias, onde costuma ser mais eloquente
o discurso que os versos produzidos, e que se refugiam em blogues,
revistas e eventos literários de facção.
Os cultores da obra de Haroldo de Campos ficarão
perplexos com os comentários, nada gratuitos, bem fundamentados,
sobre um dos criadores do Concretismo. Considera-o beletrista, pernóstico
e pedante, um “poeta de vanguarda com matriz arcaica, fenômeno
não surpreendente na cultura brasileira”. Comenta o
livro Entremilênios (Perspectiva, 2009), edição
póstuma, apoiando-se em bibliografia pertinente que revela
um crítico fundamentado em ampla literatura (possui ou tem
acesso a um acervo considerável, a julgar pelas citações
que dão suporte às análises). E escapa de nomes
que são recursivos e repetitivos na crítica acadêmica
no Brasil...
Haroldo de Campos teria produzido um texto desalinhavado
que não chegou a culminar, mas que foi meticulosamente organizado
por Carmen Campos, deixando dúvida quanto a saber se estamos
diante de versos acabados ou se integram as anotações
laterais, de uma revisão (inacabada) do autor que, como se
sabe, era preciosista como um enciclopedista. O julgamento derradeiro
é o de que “a ambiguidade no uso expressivo da linguagem
se vincula à ambiguidade mesma do projeto literário
de Haroldo de Campos.” Haroldo, na visão de F. F.,
apelaria com "metáforas sexuais [que] figuram em ritmo
alucinante, algumas risíveis". Refere-se a uma das passagens
mais desconstruídas e não lineares do livro. Polêmica
maior só mesmo a de Bruno Tolentino com os concretistas no
final do século...
Recebo o "risível" no bom sentido
do termo e confesso admiração pelo discurso fragmentário,
poliédrico, e um tanto esperpêntico de H.C., mas não
desqualifico as opiniões de F.F. no tocante a certo gongorismo
na construção verbal da obra, mas com a graça
perversa e "alucinante" que o aproxima de um Quevedo,
daí o caráter algo anárquico, híbrido
e ambíguo no processo criativo...
Esta é apenas uma amostra das polêmicas
do livro de Felipe Fortuna, ao lado de análises instigantes
da obra de Murilo Mendes em sua correspondência – Murilo
teria sido um precursor do visual sobre o conceitual e do plástico
sobre o musical, segundo João Cabral de Melo Neto. Refere-se
aos postulados políticos e estéticos do multifacético
José Paulo Paes; e assim por diante.
Trata-se de um livro admirável, "duela
a quien duela" (como disse aquele político destronado),
uma das raras exceções de crítica autêntica
no panorama atual dos estudos de nossa poesia, mas também
disserta sobre outros autores da paideuma obrigatória como
Mallarmé et caterva (com o devido respeito!).
Ah, sem esquecer de frisar que Esta Poesia
e Mais Outra oferece um Índice Onomástico, coisa
que somente as melhores editoras costumam publicar.
* Antonio Arnoni Prado, em tese doutoral transformada em livro,
tenta demonstrar que um grupo de modernistas, do Rio de Janeiro,
fazia uso constante deste recurso de autopromoção,
trocando favores através de resenhas literárias entre
os autores... Ver: PRADO, Antonio Armoni. Itinerário de
uma falsa vanguarda. Os dissidentes, a Semana de 22 e o Integralismo
(São Paulo: Editora 34, 2010).
Publicado no blog de ANTONIO MIRANDA
Brasília
09/12/2010
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