UM LIBELO CONTRA O IMPÉRIO DA MOEDA
Luiz Sérgio Guimarães
Onze anos de ininterrupta e obsessiva doutrinação
neoliberal não conseguiram matar o velho nacionalismo. Na
versão apresentada pelo advogado André Araújo,
em seu livro "Moeda & Prosperidade - O Impasse do Crescimento
na Política de Estabilização" (TOPBOOKS),
ele ressurge remoçado e atlético.
Araújo não amplia as fileiras de
críticos do excesso de conservadorismo monetário da
atual diretoria do Banco Central. Os críticos, muitos deles
adeptos do neoliberalismo também professado pelo BC, querem
menos juros, menos apreciação cambial e mais crescimento.
Tudo "dentro" do modelo. Não querem a revogação
do modelo, mas a gestão mais competente e qualificada dos
mesmos princípios postos em prática desde 1994.
Araújo quer a substituição
do modelo por um projeto nacionalista de crescimento. Para tanto,
o livro se dedica a demolir os dogmas reverenciados pelos condutores
da política econômica deste e dos dois mandatos presidenciais
anteriores.
Já na Introdução, Araújo
esclarece: o neoliberalismo não é uma verdade científica.
Trata-se de uma doutrina política destinada a dominar ideologicamente
e sujeitar a sociedade aos interesses econômicos de uma elite,
a financeira. A estrutura de acobertamento do caráter ideológico
do movimento neoliberal é notavelmente eficiente. Alguns
comentaristas conservadores nem reconhecem a existência dele.
Mas o plano que deu origem a ele no território brasileiro,
o Real, de 1994, ainda não acabou.
Depois que o plano de estabilização
monetária conferiu à economia um mínimo de
funcionalidade, deve ser abandonado, diz o advogado. Caso persista,
condenará o país ao sempiterno resfriamento econômico
e, por conseguinte, à crise social. Será possível,
depois de desativado o plano, crescer sem inflação
ou com pouca inflação.
Um dos mitos da doutrina neoliberal, teorizada
pelo economista austríaco Friedrich von Hayek e operacionalizada
pelo monetarista americano Milton Friedman, prega que a solução
dos problemas nacionais deve ser buscada na conjugação
da abertura total da economia aos mercados internacionais e do permanente
estado de reformas. Os governos precisam fazer a "lição
de casa" o tempo todo.
Para Araújo, isso significa a permanente
desmontagem do Estado e de seus sistemas de saúde, educação,
amparo social e segurança. "Os neoliberais querem neutralizar
a idéia keynesiana de que cabe ao Estado proteger os mais
fracos. Mas é justamente para isso que existe o Estado",
escreve o autor.
Araújo investe contra a idéia segundo
a qual o crescimento econômico está condicionado à
estabilidade monetária. Trata-se, diz ele, de um "estranho
axioma". Quando artificial, a estabilidade gera desemprego
e crise social, não crescimento. A única estabilidade
confiável é a que resulta de um processo natural e
virtuoso de equilíbrio econômico geral. Ela é
atributo das economias maduras, que já resolveram os problemas
do crescimento.
A obsessão antiinflacionária dos
governos neoliberais tem uma explicação simples. A
moeda estável é o "único instrumento,
o totem, o ícone valioso que o mercado entende". Sem
moeda estável não há como fazer negócios
no mercado financeiro.
"Toda a estrutura contratual, bancária,
de emissão de títulos, de previdência privada
e de derivativos necessita do parâmetro-mor, da baliza da
moeda em equilíbrio. Quem pode operar sob regime inflacionário
é a economia da produção, a economia real,
a economia do povo, a economia não-financeira", diz
Araújo. A estabilidade monetária não é
pré-requisito para a expansão econômica, mas
para a preparação da economia para a invasão
do capital especulativo, dos fundos de investimento, dos hedge
funds, das grandes aquisições de empresas nacionais,
estatais e privadas.
A longa discussão sobre crescimento e
inflação é o ponto mais polêmico do livro.
A argumentação governamental de que o combate à
inflação é moral e socialmente justificável,
pois visa a preservar a renda dos mais pobres, é contestada.
"Se ao povo fosse dada a opção de estabilidade
com desemprego ou inflação com emprego, esta última
venceria, porque é possível sobreviver com emprego
e inflação, mas não com estabilidade sem emprego".
André Araújo distingue dois tipos
de inflação. A ruim é a que resulta da ampliação
do déficit público necessária para a cobertura
dos gastos crescentes de custeio. A boa consiste na recuperação
da capacidade emissora pelo governo para financiar investimentos
produtivos e expandir o crédito à produção.
Essa capacidade é menos onerosa que o endividamento público
interno. O exemplo histórico do primeiro caso pode ser colhido
nos períodos entre 1961 e 64 e entre 1985 e 1994.
A época da "inflação
produtiva" ocorreu entre os anos JK (1956 a 1960) e nos governos
militares (1965-1984).O crescimento será impossível
no "modelo monetarista", até porque, observa Araújo,
o objetivo do modelo não é o crescimento, mas, sim,
o "equilíbrio na estagnação". O crescimento
atrapalha o monetarismo porque exerce pressões insuportáveis
sobre variáveis que prefere deixar neutras. O crescimento
faz, por exemplo, implodir o coração do modelo: o
regime de metas de inflação.
Araújo propõe dois planos detalhados
de saída do monetarismo doutrinário para um modelo
que chama de "eclético flexível": um conservador
e outro mais radical. Ambos passam pela reestruturação
da dívida interna, o controle do câmbio e controles
de preços.
Não se pense que o livro de Araújo
se destina a divulgar programas "esquerdistas" ou "socialistas".
Freqüentemente, o advogado flerta com a direita nacionalista,
embora seu figurino ideal de estadista o aproxime mais do economista
inglês John Maynard Keynes (1883-1946) e do presidente do
Federal Reserve, Alan Greenspan. Este é o típico "pragmático
não-doutrinário" que fascina o autor, cujo livro
só será debatido intensamente se a causa for abraçada
por um candidato à sucessão de Lula com chances reais
de vitória.
VALOR ECONÔMICO
27/01/2006
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Moeda
e prosperidade
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