SEM PAPAS NA LÍNGUA
Francisco Bosco
Para Antonio Risério, militantes de movimentos identitários
instauraram um ambiente intimidatório no demate público
Na “Nota do autor” que abre seu novo livro, Antonio Risério apela a que o leitor se concentre “no que de fato eu fiz”, e não “no que deixei de fazer”. Vou acatar a princípio o pedido e apresentar o que me parecem ser os traços principais da obra. Como mancheta seu título, Sobre o relativismo pós-moderno e a fantasia fascista da esquerda identitária (Topbooks) é uma espécie de ensaio-manifesto que realiza a mais franca e dura crítica já dirigida aos chamados movimentos identitários no Brasil destes últimos anos.
“MILITANTES DESSES MOVIMENTOS INSTAURARAM UM AMBIENTE INTIMIDATÓRIO NO DEBATE PÚBLICO, A PARTIR DE PREMISSAS FALSAS E ESTRATÉGIAS CONTROVERSAS”
Risério não se deixou intimidar e soltou um petardo dotado de suas habituais virtudes: o trânsito fácil entre antropologia e história das ideias, a erudição à palma da mão, a verve da fatura e sobretudo a benigna alergia à ignorância sectária — sempre remediada pela capacidade de destruir os mitos autoindulgentes.
Com essas armas, ele ataca o adversário de cabo a rabo. Observa que “identitários não perdem tempo com argumentos”, estando mais “empenhados em destruir reputações”. É muitas vezes verdade: o registro argumentativo é o do universal, onde a origem da enunciação se perde, e com ela o ativo maior dos militantes, seu lugar de fala.
Aponta a contradição: “Movimentos que nasceram do respeito ao outro passaram a tomar como inimigo justamente o outro”. Identifica os esquematismos que anulam o indivíduo, sua vida moral e suas ações políticas concretas, em favor de categorias maniqueístas: “Todo branco é igual e todo homem é idêntico. Não há diferença entre Stálin e Dorival Caymmi”.
Mobiliza o antropólogo Ernest Gellner para criticar a ideia de que há epistemes minoritárias a serem reconhecidas e valorizadas em detrimento da racionalidade científica iluminista e eurocêntrica. Defende que a ciência não é branca nem ocidental, e sim potencialmente planetária. E que a assimetria geopolítica produzida por seu maior ou menor domínio nada tem a ver com qualquer “glorificação racista”.
Já contra o esquematismo maniqueísta — que confunde culpa e responsabilidade e assim combate homens, em vez de o machismo; brancos, em vez de o racismo etc. —, Risério evoca uma passagem esplêndida de Frantz Fanon: “Eu sou um homem e o que tenho é de me haver com o passado inteiro do mundo”. Ou seja, tal como escreveu Karl Jaspers, um indivíduo só pode ser culpado por atos que efetivamente cometeu. Uma pessoa branca vivendo hoje não é culpada pela escravidão. Mas cada indivíduo é responsável por tudo que acontece em seu tempo. Eu sou responsável pelo racismo. Se eu não o combater, aí, sim, a culpa é minha.
Até aqui, elenquei críticas que considero pertinentes. É preciso lembrar, entretanto, que elas dizem respeito a determinados discursos identitários; mesmo que dominantes, não são os únicos.
Com essa ressalva, suspendo meu pacto inicial e abordo o que Risério não faz no livro. Nem sempre a erudição horizontal é acompanhada pelo devido mergulho teórico ou zelo conceitual. Risério passa depressa demais por aspectos importantes. Descarta ou subestima a importância dos conceitos de poder e reconhecimento para a compreensão dos pleitos de minorias — no primeiro caso, por “não aceitar quase nada das teses de Foucault”, quando bastaria explicar por que não aceita esse conceito, especificamente.
Mais importante, minimiza — para não dizer mimimiza — as razões das pessoas subalternizadas, bem como caricatura alguns de seus argumentos. Sobre a noção de lugar de fala, por exemplo, só enxerga sua face restritiva e autoritária — “Somente anões bissexuais chineses podem falar sobre anões bissexuais chineses” —, anulando sua dimensão inclusiva. Ao tratar da compreensão de que a língua é um campo de luta, descreve-a como “uma nova magia nominalista”. Deprecia, assim, a premissa correta de que a língua naturaliza e consolida preconceitos sociais. Ora, se os efeitos da língua no mundo são reais, a busca por transformá-la não é uma versão pós-moderna do arcaico animismo, e sim uma luta política real — em que pesem exageros e paranoias.
Esse livro que não é feito tem uma importância da ordem da justiça: a unilateralidade da perspectiva oblitera a razão geral das disputas, iluminando apenas seus erros. Mas tem importância política também. Para uma obra que se diz preocupada com a polarização generalizada do debate brasileiro e se alinha a “certas movimentações políticas reformistas de centro”, é de se perguntar se o registro belicoso desse quase manifesto não acaba “aprofundando apartamentos” que desejaria evitar.
Publicado na revista Época em 8 de novembro de 2019.
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