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CARPEAUX, FENÔMENO INTELECTUAL

Textos jornalísticos do ensaísta Otto Maria Carpeaux são reeditados, e quem ganha é toda a cultura

Luiz Zanin Oricchio

A publicação neste começo de 2006 do Volume II dos Ensaios Reunidos de Otto Maria Carpeaux deveria ser saudada como grande acontecimento literário. E por quê? Porque nesses 205 textos, publicados em vários jornais (incluindo o Estado), e mais três prefácios, encontram-se exemplos de um ideal poucas vezes atingido - a conciliação de um saber universitário e sistemático com a agilidade e a simplicidade da linguagem jornalística.

A editora do volume (de 942 páginas), Christine Ajuz, escreve na introdução que o livro deveria ter sido lançado antes. Os atrasos se deveram ao estado precário dos documentos, o que tornou difícil a tarefa de escanear os artigos. Havia frases truncadas e rasuras, que às vezes tornavam o texto ininteligível. Christine teve de pesquisar na Biblioteca Nacional e finalmente conseguiu restabelecer a íntegra desses textos, que se estendem ao longo de 23 anos de trabalho intelectual. O primeiro data de 19 de maio de 1946 e o último de 7 de junho de 1969. Já os três prefácios reproduzidos foram escritos para obras de Manuel Bandeira (1946), Goethe (1948) e Hemingway (1971).

O projeto de edição das obras completas de Otto Maria Carpeaux pela Topbooks foi iniciado com a publicação de um primeiro volume em 1999, contendo os seis livros de crítica publicados em vida pelo autor. Agora surge este, com os artigos dispersos, prefácios e introduções a livros. Já existe material suficiente para um terceiro volume, ainda sem data de publicação.

Carpeaux foi um escritor incansável. Mas a primeira coisa que chama a atenção do leitor neófito em Otto Maria Carpeaux não é tanto a quantidade como a diversidade de assuntos abordados pelo autor. Numa época como a nossa, na qual especialização é virtude, cabe admirar esse ecletismo que inclui filosofia, literatura, história da religião, sociologia, artes plásticas, música. Mais: lendo-se os artigos, descobre-se que, no interior de um mesmo texto, Carpeaux costumava saltar de uma área do conhecimento a outra para que a diversidade de abordagens, temas e referências se iluminassem reciprocamente, em benefício do todo. Quer dizer, era um intelectual capaz de mobilizar todo o seu enorme capital de cultura em benefício de um artigo de jornal. Isso num tempo em que os espaços eram mais generosos do que hoje, mas mesmo assim...

No excelente ensaio introdutório de Ivan Junqueira, Mestre Carpeaux, lemos exatamente uma descrição desse método: "O que se vê nesses ensaios, e em diversos outros que integram a coletânea, é aquele astucioso procedimento de Carpeaux que consiste no entrelaçamento de determinada obra literária com os múltiplos contextos que lhe deram origem, estabelecendo assim um mosaico que nos lembra muito de perto aquele continuum que T.S. Eliot definia como um 'fenômeno de cultura'...".

À medida que vamos lendo os artigos, começamos a nos dar conta do formidável avanço de cosmopolitismo que significou a presença de Carpeaux no Brasil dos anos 40 em diante. Seus ensaios falam, é claro, dos grandes nomes da cultura ocidental. Estão lá os clássicos, Dante, Shakespeare e Cervantes, mas também Eliot, Graham Greene, El Greco, Bach, Beethoven, Mozart, a Bíblia, Büchner, Pound, Koestler, Huxley, Wagner, Joyce, Sartre, Kafka, Heine. É um programa completo de divulgação cultural, realizado em páginas de periódicos - essas mesmas que a auto-ironia dos próprios jornalistas diz que embrulham peixe no dia - seguinte. Conversa: as páginas estão aí.

E elas falam também dos brasileiros, pois, afinal, um intelectual de respeito não divulga apenas o que existe de excelente no mundo; também se debruça sobre o seu país. Mais ainda quando se adota um país, como aconteceu com Carpeaux.

E, assim, Carpeaux escreveu sobre Murilo Mendes, Vieira, Machado e Bandeira, Gilberto Freyre e Graciliano Ramos, além de textos mais gerais como aquele sobre as Tendências do Moderno Romance Brasileiro ou outro, Canudos como Romance Histórico - este a propósito de um romance de João Abade sobre essa emblemática tragédia social brasileira. Carpeaux relembra que, em Euclides da Cunha, temos o ponto de vista do homem civilizado, "assustado pelo fanatismo e pela ferocidade do homem inculto do interior". O texto de Carpeaux acaba se transformando em reflexão sobre o significado do romance histórico, tomando exemplos como Memórias de Adriano (que ele cita em francês, no original, pois o livro de Marguerite Yourcenar não havia sido ainda traduzido naquele ano de 1958, quando Carpeaux escrevia o artigo no Estado) e autores que se serviram do gênero, como Hugo, Vigny, Balzac, Manzoni, José de Alencar, Pushkin e Gogol, entre outros. Mas a novidade de João Abade, o romance de João Felício dos Santos, é que procura um ponto de vista interno: "ver Canudos por dentro" e não com o horror do civilizado diante daquilo que ele não conhece, teme e não compreende.

Esse é um exemplo entre outros e, por acaso, fala de um livro pouco lido hoje em dia. Mas denota o apreço de Carpeaux pelo esforço em compreender as coisas por dentro, e não com olhar distanciado e estrangeiro. Talvez um pouco da sua própria história pessoal esteja contida nesse tipo de atitude compreensiva. Em 1938, ainda Otto Maria Karpfen, engajou-se na Áustria, sua terra natal, na luta contra o nazismo. Quando o país foi anexado pela Alemanha, viu-se obrigado a fugir e escapou primeiro pela Antuérpia, mas teve de deixar a Bélgica em seguida, quando os nazistas avançaram. Imigrou para o Brasil e, durante a viagem de navio, a guerra estourou. Chegou aqui sem falar português e sem qualquer contato anterior com a literatura brasileira. Aportou como imigrante comum e foi destinado ao Paraná, candidato ao trabalho na lavoura, apesar dos vários diplomas que trazia na bagagem. Em 1941 enviou uma carta ao crítico Álvaro Lins, oferecendo um artigo sobre Kafka, a quem havia conhecido pessoalmente na Europa. Não apenas o artigo foi aceito, e publicado no Correio da Manhã, como Carpeaux passou à condição de colaborador fixo do jornal. Começava ali, em 1941, sua carreira jornalística brasileira. Para sorte de todos nós.


caderno Cultura
O ESTADO DE S.PAULO
08/01/2006

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