PRESENÇA
DE CARPEAUX
Ensaios reunidos (1946-1971) - Volume 2, de Otto Maria
Carpeaux
Ronaldo Conde Aguiar
Otto Maria Carpeaux costumava dizer que sua
vida nada tivera de especial. Assim não parece. Em 1938,
cinco dias após a anexação da Áustria
à Alemanha, ele e sua esposa, a cantora lírica Helena,
tiveram que empreender uma fuga arriscada pelos cantões de
uma Europa ameaçada pelo nazismo. Levaram consigo apenas
alguns livros raros e objetos pessoais. O nome de Otto Karpfen (ele
só afrancesaria o nome no Brasil), filho de judeu e mãe
católica, constava de uma lista de antinazistas austríacos
que seriam presos e assassinados.
Carpeaux refugiou-se, primeiro, na Antuérpia,
onde encontrou trabalho no "Gaset Van Antwerpen",
o maior jornal belga de língua holandesa. Em 1939, em face
do avanço das tropas hitleristas, Carpeaux abandonou a Bélgica
e, na condição de imigrante, veio para o Brasil. Durante
a viagem, de navio, a guerra estourou na Europa.
Garimpagem de textos em arquivos precários
No Brasil, o casal de imigrantes penou. Não
tinham amigos, não conheciam a língua, estavam desempregados.
Foram para o Paraná, mas preferiram residir em São
Paulo, onde sobreviveram vendendo os livros e objetos que haviam
trazido da Áustria. Um dia, Carpeaux escreveu uma carta ao
crítico literário Álvaro Lins, que trabalhava
no "Correio da Manhã". Em resposta, o autor
de "Os mortos de sobrecasaca" mostrou-se interessado
em ajudar o austríaco. Pediu-lhe que escrevesse um artigo
para o jornal, tema livre. Carpeaux preparou, então, um ensaio
sobre Kafka, o primeiro na imprensa brasileira sobre o autor de
O processo. A partir daí, Carpeaux passou a escrever
artigos semanais para o matutino carioca. E não parou mais:
até 1978, ano em que faleceu, estima-se que Carpeaux tenha
escrito, pelo menos, dois mil ensaios, além de pequenos artigos
(muitos sem assinatura), livros (como os oito volumes da "História
da literatura ocidental") e verbetes de enciclopédias.
Os livros e ensaios dispersos de Carpeaux estão
sendo reeditados agora, graças à parceria Topbooks/UniverCidade
Editora. Portentosa empreitada editorial, o projeto vem exigindo
um grande esforço para ser levado adiante. "Ensaios
reunidos: 1946-1971 - Volume II", recém-chegado
às livrarias, é exemplo disso: a jornalista Christine
Ajuz, responsável por sua organização, foi
obrigada a trabalhar dois anos, garimpando artigos em arquivos precários,
onde os jornais se encontravam em estado lastimável, com
folhas rasgadas, manchadas e ilegíveis. Mas valeu a pena.
O pensamento e a imensa cultura de Carpeaux estão por inteiro
nas 942 páginas da coletânea - tanto nos 205 ensaios
como nos três prefácios escritos para as obras de Bandeira
(1946), Goethe (1948) e Hemingway (1971). Tão importante
quanto o primeiro, de 1999, este segundo volume dos "Ensaios
reunidos" reafirma, sobretudo às novas gerações,
a dimensão da obra de Carpeaux, que durante décadas
influenciou o amadurecimento intelectual de gerações
de brasileiros.
A obra de Carpeaux mereceria um estudo acurado,
que procurasse desvendar todas as suas nuances. Mesmo educado junto
aos culturalistas alemães e italianos do começo do
século passado, Carpeaux tinha consciência de que nada
se compreende fora da História. Isto, porém, não
o levava a supor que a cultura e as artes fossem mero reflexo da
História. Ele não se deixava dominar por idéias
preconcebidas, nem por métodos reducionistas, que, a rigor,
conduzem o senso crítico a verdadeiros becos sem saída.
Carpeaux era, segundo Alfredo Bosi, um leitor dialético,
cuja obra era isenta de generalizações, mas rica de
comparações parciais.
Os "Ensaios reunidos" testemunham
o pensamento agudo de Carpeaux, que, a todo o momento, lançava
mão da psicanálise, da sociologia, da filosofia, da
economia política, da história comparada, do marxismo,
da teologia e da estilística, de modo a inferir e iluminar
os meandros do fato cultural ou literário. Tal procedimento
não constituía, em si, um método, mas um duto
através do qual ele podia apreender a complexidade da vida
social e política na qual estavam inseridas as artes. Os
205 ensaios da coletânea, que abrangem e discutem um elenco
enorme de autores, livros e assuntos, demonstram perfeitamente como
o olhar erudito de Carpeaux se propaga em direção
a outras áreas do conhecimento.
"A arte não antecipa a vida, mas
a vida realiza a arte"
A importância dos ensaios evidencia-se
desde o primeiro deles, "O testamento de Huizinga",
ao último, "Ernst Fischer e a sociologia da música",
no qual discute a tese de antecipação da vida pela
arte, concluindo: "a arte não antecipa a vida, mas a
vida realiza a arte". São relevantes, ainda, os ensaios
que escreveu sobre "Graciliano e seu intérprete",
"Mário de Andrade: escritor euro-americano"
e o "Estilo de Gilberto Freyre". Graciliano seria,
na visão de Carpeaux, um valor permanente, cujos romances
revelavam intensa dramaticidade. Mário de Andrade, a figura
mais complexa da história literária brasileira. O
estilo de Gilberto Freyre seria anti-retórico, dispensando
grandiloqüências: não era um orador, mas um grande
escritor.
Carpeaux era um homem de luta, dotado de humor
e alegria, do dom da emoção e da fúria. Em
1964, tornou-se opositor da ordem militar que tomou conta do poder
no Brasil. Quando a vida brasileira tornou-se asfixiante, afastou-se
do "círculo de amigos da literatura" e passou a
se dedicar à luta contra a ditadura. Com isso, sacrificou
a sua produção intelectual, mas o que lhe importava
na época era lutar por valores como a liberdade e a justiça.
Ele, que sempre dera a todos nós uma aula de erudição,
nos deu, com tal atitude, uma prova de grandeza moral. Era um grande
homem.
RONALDO CONDE AGUIAR é doutor em sociologia,
professor do Centro de Desenvolvimento Sustentável da UnB,
coordenador do Centro de Estudos em Cultura Brasileira, do Centro
Universitário Unieuro
caderno Prosa & Verso
O GLOBO
17/02/2006
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/ coluna de Daniel Piza
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