JOSÉ
OLYMPIO
Wilson Martins
Instalando-se como editor no Rio
de Janeiro em 1934, José Olympio era o homem
certo, no lugar certo e na hora exata: assim se iniciava
a carreira extraordinária que o transformaria
em vulto epônimo da edição, mas
também da literatura brasileira no século
20, objeto da magistral pesquisa de José Mario
Pereira, ele próprio editor da mesma família
espiritual, obra-prima de arte tipográfica, documentação
historiográfica e preciosa iconografia (José
Olympio: o editor e sua Casa. Rio: Sextante, 2008).
O país vivia então
o momento de euforia e otimismo implantado pela Revolução
de 1930, carregada de influxos estimulantes: era a República
Nova, adjetivo que diz tudo. Nos trinta anos seguintes,
a Editora foi qualquer coisa como a imprensa oficial
da literatura viva, órgão quase exclusivo
da grande renovação e do enorme entusiasmo
criador que caracterizava a chamada "literatura
do Nordeste", àquela altura sinônimo
de literatura. A crítica teve em Álvaro
Lins o seu diretor de consciência, substituindo
Tristão de Athayde no consenso geral. A Coleção
Documentos Brasileiros respondia, no campo dos ensaios,
ao interesse predominante pela "realidade brasileira",
tema retórico do pensamento no bom e no mau sentido
da palavra.
Se quisermos fixar os pontos simbólicos
da parábola, podemos dizer que tinha Gilberto
Freyre no ponto de partida e Guimarães Rosa no
outro extremo, quando Oliveira Viana e o "romance
do Nordeste" já pertenciam ao passado. Mas
foi, antes, uma Casa de inclusões, editando Manuel
Bandeira e Carlos Drummond de Andrade, sem esquecer
a multidão de acólitos que os rodeava,
passando da maturidade modernista para os tempos do
"esteticismo", forma ou fórmula de
ultramodernidade que se opunha ao Modernismo: o nacionalismo
cedia lugar ao internacionalismo dos novos estetas,
e, logo mais, ao superinternacionalismo pela derivação
espontânea do Concretismo. Da mesma forma, a "realidade
brasileira" de Gilberto Freyre nada tinha a ver
com a de Oliveira Viana, se é que não
se propunha expressamente a contestá-la —
este último, aliás, também editado
por José Olympio — enquanto o regionalismo
de Guimarães Rosa marcava claramente as suas
distâncias com o de 1930.
Tudo isso no interior do furioso
debate ideológico que, nessa época, dividia
o mundo em Direita e Esquerda. Ainda aqui, José
Olympio foi a figura patriarcal e equidistante de uma
e de outra, em atitude de soberano ceticismo empresarial,
editando Plínio Salgado e Jorge Amado, Getúlio
Vargas e Graciliano Ramos, Tristão de Athayde
e Rubem Braga, José Américo de Almeida,
Aníbal Machado e Josué Montello. Sempre
me pareceu (por restrita que tenha sido a minha convivência)
que, sob as aparências de vovô bonachão,
ele era, no fundo, um espírito autoritário,
consciente do respeito que lhe era devido. Tinha, também,
um temperamento de jogador (inclusive no sentido próprio
da palavra), qualidade igualmente indispensável
no trabalho de editor. Assim, mal chegado ao Rio de
Janeiro, "apostou" em Humberto de Campos,
cujas tiragens solidificaram financeiramente a empresa
iniciante: "A Livraria José Olympio Editora
cresceu com a chegada de Humberto de Campos a seu catálogo
em 1933, quando se publicou a 1ª edição
de Os párias, livro de crônicas,
e a 4ª edição da primeira parte das
Memórias (1886-1900). Popularíssimo
à época, sobretudo pelos violentos ataques
desferidos na imprensa contra Getúlio Vargas,
Campos foi um dos responsáveis pelo impulso empresarial
da Casa, que na década de 1930 chegou a vender
quase 1 milhão de exemplares só desse
autor. Em seguida vieram José Lins do Rego, Rachel
de Queiroz, Graciliano Ramos, e outros que para lá
se transferiram por empenho pessoal de J. O. ou porque
suas antigas editoras estavam encerrando as atividades,
como ocorreu com Gastão Cruls e Agripino Grieco,
antes no catálogo da Ariel".
Não são raros, são
até comuns, na história da edição,
os escritores de sucesso que garantem a vida, se não
a sobrevivência, das empresas, mas cabe perguntar
se os leitores de hoje (inclusive críticos e
especialistas) podem avaliar o que foi a popularidade
de Humberto de Campos naqueles anos. Em visão
mística, lembraremos que faleceu no mesmo ano
em que possibilitou a arrancada de José Olympio.
Houve na história das minhas
relações com José Olympio a grande
crise provocada pelas Memórias do cárcere.
Sabia-se que o PCB exerceu forte pressão sobre
a família de Graciliano Ramos para impedir-lhes
a publicação, acabando por aceitá-la
à custa de cortes textuais e correções
cuja verdadeira extensão jamais saberemos. Das
idas e vindas entre a família e os censores do
Partido resultaram, pelo menos, três "originais",
datilografados e redatilografados ao sabor das exigências
impostas. Supõe-se que o último deles
recebeu o imprimatur canônico, acontecendo
apenas que, na confusão inevitável de
tantos "originais", as páginas escolhidas
para ilustrar os volumes diferiam sensivelmente das
impressas, suscitando dúvidas quanto à
respectiva autenticidade.
Denunciei o fato em O Estado
de S. Paulo, daí resultando os violentos
ataques com que me mimosearam os porta-vozes do Partido,
confirmando, com isso, que efetivamente tinha havido
censura. Anos depois, Ricardo e Clara Ramos, filhos
de Graciliano, confirmaram, em livros convenientemente
abafados, que de fato o texto autêntico tinha
sido adulterado por imposição do Partido.
Como é natural, o episódio magoou José
Olympio, ele próprio ludibriado por tantas manipulações.
A longo prazo, as relações se normalizaram
entre José Olympio e eu mesmo, que continuei
a visitá-lo pelos anos afora quando vinha ao
Brasil nas férias acadêmicas, sempre recebido
com a maior cordialidade nos inesquecíveis almoços
das sextas-feiras.
JORNAL DO BRASIL
Rio de Janeiro
16/08/2008
e
GAZETA DO POVO
Curitiba
16/08/2008
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