RETRATO DE
UM EDITOR
José Olympio mudou a literatura
brasileira do século XX, fez uma revolução
gráfica na indústria editorial do país
e ainda publicou livros de culinária e auto-ajuda
Lucila Soares
ENTRE LIVROS
O editor em sua sala: nas palavras de Drummond,
ele lançou autores da direita, do centro, da
esquerda
"e do planeta Sírio"
Chega
às livrarias, na semana que vem, uma obra admirável.
José Olympio: o Editor e Sua Casa (424 páginas,
150 reais) é o primeiro grande inventário
da produção da editora criada em 1931
por José Olympio Pereira Filho (1902-1990). Organizado
por José Mario Pereira (o sobrenome é
coincidência), o livro tem edição
a cargo da Sextante, fundada por Geraldo Jordão
Pereira (1938-2008), filho de José Olympio, e
dirigida por Marcos e Tomás Pereira, netos do
editor. Um dos méritos do livro, favorecido por
seu formato gráfico, é lançar luz
sobre o elenco de expoentes das artes plásticas
brasileiras do século XX que imprimiram sua marca
à editora tanto quanto os escritores, que constituíam
então um time de excelência da poesia,
da ficção e do ensaio. Ali estão
reproduzidas 530 capas, quartas capas e folhas de rosto
criadas por nomes como Tomás Santa Rosa, Portinari,
Cícero Dias, Oswaldo Goeldi, Luís Jardim
e Poty Lazzarotto para obras de José Lins do
Rego, Graciliano Ramos, Gilberto Freyre, Rachel de Queiroz,
Guimarães Rosa.
O trabalho desses artistas teve mais
valor do que simplesmente embelezar as edições.
Em O Livro no Brasil, o pesquisador inglês Laurence
Hallewell assinala que "os livros com o sinete
editorial da José Olympio logo começaram
a destacar-se da insípida mediocridade de seus
concorrentes, pois o editor dedicava cuidadosa atenção
ao projeto gráfico". Esse esmero na apresentação,
aliado a práticas como o adiantamento de direitos
autorais, foi uma das marcas do início da profissionalização
dos ofícios de escrever e editar. "Era uma
editora revolucionária, que lançava com
ímpeto nomes conhecidos de pouca gente ou de
ninguém. Apresentava um livro diferente e elegante,
formato padronizado, capa desenhada por Santa Rosa,
e o aspecto gráfico e o prestígio da casa
acendiam nos escritores o desejo de figurar em seu catálogo",
escreveu Carlos Drummond de Andrade.
O projeto desse grande inventário
da José Olympio nasceu em 2002, ano do centenário
do editor, num almoço entre José Mario,
Marcos Pereira e Victor Burton, responsável pela
concepção gráfica do livro. A empreitada
revelou-se mais complexa do que se previa. O lançamento
está sendo feito seis anos depois, no décimo
aniversário da Sextante. O resultado beneficiou-se
dessa longa gestação. A publicação
ganhou mais 174 páginas em relação
às 250 previstas inicialmente e, com isso, alcançou
fôlego de obra de referência. Incorporou
um apêndice em que se publicam depoimentos, artigos,
cartas e entrevistas que retratam a editora e o editor.
E esquadrinha um lado menos conhecido da produção
da José Olympio, ao mostrar que seu catálogo
abrigava também clássicos da literatura
mundial, traduzidos por um time do qual Rachel de Queiroz
era uma das mais assíduas. Isso além de
livros de culinária, de medicina, de direito,
de psicologia e de auto-ajuda (gênero que, por
coincidência, é a base do sucesso da Sextante).
Marcos Pereira, que (como toda a família do editor)
cresceu ouvindo a saga do avô que nasceu pobre
em Batatais e começou a trabalhar aos 11 anos,
espantou-se com a abrangência da atuação
da José Olympio. "Entre o início
dos anos 1930 e meados dos 1960, a editora foi ao mesmo
tempo Record, Companhia das Letras, Objetiva e Sextante."
AMIGOS, AMIGOS, NEGÓCIOS À PARTE
José Olympio e Vargas, nos 50 anos do editor:
o livro mostrado
ao presidente é de um adversário político
Os números também são
de espantar. Entre 1931, ano de sua criação,
e 1975, quando, em dificuldades financeiras, foi encampada
pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico,
a José Olympio fez 3.787 edições.
E ainda hoje se mantém uma marca de prestígio,
como parte do grupo Record. José Mario Pereira,
que também é editor – fundou e dirige
desde 1990 a Topbooks –, mergulhou na pesquisa
desses livros com prazer de bibliófilo. Enfurnou-se
na Casa de Rui Barbosa, que guarda a correspondência
de José Olympio, e no acervo da editora que desde
2006 está na Biblioteca Nacional. Esquadrinhou
as bibliotecas dos amigos e os sebos do Rio de Janeiro
e de São Paulo, num garimpo que resultou numa
coleção de 1.500 livros da José
Olympio. O resultado pode ter duas leituras. O texto
principal, cujo rigor e riqueza de informações
compensam um certo exagero laudatório, será
de grande utilidade para os estudiosos da história
editorial brasileira. O leitor menos familiarizado com
o tema provavelmente vai preferir o caminho proporcionado
pela farta iconografia e pelas legendas enriquecidas
por histórias pitorescas e reveladoras.
O conjunto de fotografias, dedicatórias
e cartas deixa patente a grande rede que uniu José
Olympio à linha de frente da cultura e da política,
cultivando amizades e editados à direita, ao
centro e à esquerda. Durante a ditadura de Getúlio
Vargas, o editor lançou Angústia, de Graciliano
Ramos, que estava preso, e a coleção de
discursos do presidente, reunida sob o título
A Nova Política do Brasil.
CENSURA NO GOVERNO DE GETÚLIO VARGAS
Auto de apreensão de Capitães da Areia,
de Jorge Amado (à esquerda), e capa do livro:
808 exemplares queimados em Salvador
O livro reproduz documentos preciosos
– alguns inéditos – para a história
da literatura brasileira, como a primeira página
de Vidas Secas, ainda chamada de O Mundo Coberto de
Penas, título originalmente escolhido por Graciliano
para sua obra mais conhecida e mudado por sugestão
de Daniel Pereira, irmão de José Olympio.
Também há curiosidades, como um anúncio
de Grande Sertão: Veredas redigido pelo próprio
Guimarães Rosa. Outros documentos sintetizam
passagens da história do Brasil, como o auto
de apreensão de Capitães da Areia, de
Jorge Amado, durante o Estado Novo. Ao final da leitura,
o que se percebe é que José Olympio: o
Editor e Sua Casa transcende o inventário a que
se propõe para traçar um original retrato
da inteligência brasileira no século XX.
Lucila Soares é
chefe da sucursal Rio de Janeiro de VEJA, neta de José
Olympio e autora de Rua do Ouvidor 110, uma História
da Livraria José Olympio.
REVISTA VEJA
30/06/2008
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