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JOSÉ OLYMPIO REINVENTADO

Ivan Junqueira*

Não há nada mais pertinente nem oportuno, ou mesmo mais venturoso, do que se atribuir a um grande editor a tarefa de reviver em livro a vida e as atividades de outro grande editor. É isso o que se constata, de forma superlativamente admirável, ao degustar-se José Olympio – o Editor e sua Casa, organizado por José Mario Pereira para a Sextante e que acaba de chegar às livrarias. Trata-se de obra no mínimo monumental não apenas por seu formato majestoso (31 x 24 cm), mas também, e acima de tudo, pelo opulento cardápio que oferece aos leitores: textos extremamente bem cuidados (inclusive os das legendas de fotos), abundante e valiosa iconografia, beneditino trabalho de pesquisa literária e editorial, com reprodução de depoimentos, artigos, cartas, dedicatórias, capas de livros de uma afortunada época que já se foi, fotos e caricaturas inéditas, bibliografia - enfim, um aparato livresco faraônico que configura, como sublinhou em recente artigo o crítico Wilson Martins, uma “obra-prima de arte tipográfica, documentação historiográfica e preciosa iconografia”.

Com modéstia, José Mario Pereira, cearense de Quixadá, define-se como organizador do volume, mas caberia aqui evocar o conceito de autoria, tamanha é a sua participação na arquitetura do livro, no qual nunca será demais relevar a circunstância de que estamos diante de uma obra concebida e escrita por um editor que se ocupa amorosamente de outro da mesma família espiritual e que desde sempre lhe serviu de mestre e modelo.Vindo de São Paulo, onde iniciara suas atividades profissionais, José Olympio instalou-se como editor no Rio de Janeiro em 1934, abrindo sua livraria e editora na elegante Rua do Ouvidor, 110. Era “o homem certo, no lugar certo e na época certa”, ou seja, a dos primeiros anos da República Nova, dos grandes poetas herdeiros do Modernismo de 1922 (Drummond de Andrade, Manuel Bandeira, Murilo Mendes, Jorge de Lima, Cecília Meireles, Vinicius de Moraes), do advento do romance nordestino (José Américo de Almeida, José Lins do Rego, Rachel de Queiroz, Graciliano Ramos), da transição do nacionalismo da Semana de Arte Moderna para o internacionalismo dos novos estetas, das decisivas transformações políticas, sociais e econômicas por que passava então o país, da floração das tendências ideológicas autoritárias, como o fascismo e o integralismo, da efervescência dos movimentos literários e filosóficos religiosos (leia-se: católicos) e de uma literatura nacional que enfim amadurecia, evoluindo do modernismo datado da década de 1920 para a plena e fecunda modernidade dos anos 40 e 50. Era a época dos radicais e enraivecidos confrontos ideológicos que dividiriam a sociedade e os intelectuais, como nunca depois se veria, entre direita e esquerda. Com seu agudo faro de editor, José Olympio, cujo temperamento tinha algo de patriarcal, manteve-se equidistante tanto de uma quanto de outra, publicando autores como Plínio Salgado e Jorge Amado, Getúlio Vargas e Graciliano Ramos, Alceu Amoroso Lima e Rubem Braga.

Na verdade, abrigou a todos e, com seu instinto de jogador, arriscou certas apostas que lhe consolidaram a robustez financeira como editor. A mais certeira delas, logo após ter chegado ao Rio de Janeiro, foi a que fez em Humberto de Campos, autor popularíssimo à época e que, na década de 1930, chegou a vender quase um milhão de exemplares, cifra fabulosa até para os dias que correm. Depois vieram os romancistas do Nordeste, e mais Aníbal Machado, Gastão Cruls, Agripino Grieco, Guimarães Rosa, Drummond de Andrade, João Cabral de Melo Neto, Clarice Lispector e tantos outros que seria fastidioso enumerar aqui. E veio depois a vitoriosa Coleção Documentos Brasileiros, que atendia, no âmbito ensaístico, aos interesses de uma compreensão vertical daquilo que se entendia como “realidade nacional”. Dirigida de início por Gilberto Freyre e depois por Octavio Tarquínio de Souza e Afonso Arinos de Melo Franco, esta coleção, como nenhuma outra antes ou depois dela, deu vez e voz aos intérpretes do Brasil. Em meio século, foram cerca de 200 títulos publicados, alguns já clássicos desde o berço, sobre um país que se tornou real para brasileiros e estrangeiros.

Não bastasse a revolução editorial a que dera início num país que contava àquela época com 70% de analfabetos para uma população estimada em 30 milhões de almas, José Olympio revolucionou também o setor gráfico-visual, mobilizando para assinar as capas e a produção gráfica de seus livros artistas da envergadura de Santa Rosa, Luís Jardim, Poty (famoso pelas capas das obras de Guimarães Rosa), Eugênio Hirsch, Gian Calvi, Anita Malfatti, Athos Bulcão, Portinari, Carybé, Cícero Dias, Di Cavalcanti, Farnese de Andrade, Iberê Camargo e Oswaldo Goeldi, para citarmos apenas estes. E inovou ainda com o acabamento de luxo de coleções que eram vendidas de porta em porta, como foi o caso, entre outras, das obras completas de Dostoievski. Enquanto permaneceu ativa, até meados da década de 1980, a Livraria José Olympio Editora lançou no mercado 4.850 edições e 1.743 autores brasileiros. Ao morrer em 1990, aos 87 anos de idade, lúcido, no apartamento alugado em que residia, na Glória, José Olympio deveria nutrir a certeza do trabalho pioneiro e revolucionário que realizou no meio editorial, o que justifica as palavras de outro grande editor de tempos mais recentes, embora também já falecido, Alfredo Machado, segundo quem José Olympio foi “o inventor da profissão de editor”.

Para levar a cabo o milagre em que consiste este José Olympio – o Editor e sua Casa, edição que deve também ao talento de Victor Burton, responsável pelo projeto gráfico, José Mario Pereira reuniu tudo o que pôde do acervo original da editora, doado depois à Fundação Biblioteca Nacional pela família de Henrique Sérgio Gregori, complementando o seu trabalho com infatigáveis pesquisas no arquivo pessoal do editor, em sebos, e coleções particulares. Escreveu e organizou os textos e as imagens e estruturou a edição em dez capítulos impecáveis quer pelo ineditismo de muitas das informações, quer pelo dinâmico senso de urdidura com que a concebeu. Esses capítulos nos dão conta dos primeiros anos da atividade de José Olympio e do que ele realizou para consolidar a literatura moderna no país, a memorialística, a literatura estrangeira, as coleções temáticas e individuais e a literatura infanto-juvenil.Em suma, o que o organizador-autor deste volume conseguiu operar em termos de resgate intelectual e profissional de nosso maior editor tem algo de catedralesco. E se José Olympio foi, como se diz, “o inventor da profissão de editor”, digo eu que José Mario Pereira é, desde já, o reinventor de José Olympio.

* Poeta e ensaísta, secretário-geral da Academia Brasileira de Letras

caderno Opinião
JORNAL DO COMMERCIO
11/09/2008

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