A VIDA DO HOMEM
QUE PÔS O BRASIL PARA LER
José Nêumanne*
Enfim, à disposição
dos leitores, a saga de José Olympio, que editou
os livros mais importantes do Brasil no século
20
Que interesse pode ter um livro de
capa dura, fartamente ilustrado, sobre a vida de alguém
que não foi poeta nem romancista e só
esporadicamente escreveu cartas? Esta é a pergunta
que um “idiota da objetividade” fará
diante das 421 páginas da edição
em grande formato de José Olympio - O Editor
e sua Casa, com organização, pesquisa
de imagens e texto por José Mario Pereira, editado
pela Sextante, para fazer justiça à trajetória
de um modesto filho de português que começou
a vida lavando vidros numa farmácia e teve a
morte pranteada pelos grandes autores e leitores do
País. A resposta pode ser dada numa sentença:
qualquer brasileiro que já tenha entrado alguma
vez numa livraria deveria saber que o paulista de Batatais
José Olympio Pereira Filho foi o mais importante
editor brasileiro do século 20. Mas somente lendo
este livro minucioso, examinando suas ilustrações
raras, passeando pela farta documentação,
em grande parte inédita reunida no anexo, é
possível ter uma idéia de que a expressão
a que recorreu o organizador do volume (que é
Pereira Filho, mas não é parente) - “o
civilizador do Brasil” -, embora justa, chega
a ser modesta diante do que fez o personagem.
Editor da Topbooks, que lançou,
entre outros, o portentoso A Lanterna na Popa,
de Roberto Campos, José Mario Pereira garimpou
nos arquivos da Livraria José Olympio Editora
provas mais que suficientes de que, mesmo não
tendo a cultura livreira de um Antônio Houaiss
nem o gênio comercial de um Mauá, José
Olympio fez mais pela cultura nacional que a União
e os Estados juntos desde Tomé de Souza. Apesar
de empregar parte dos orçamentos anuais para
o incentivo à cultura, o poder público
no Brasil nunca conseguiu fazer nada mais relevante
que pagar os vencimentos do servidor Machado de Assis,
permitindo-lhe assim legar à posteridade uma
obra da qual o Brasil pode se orgulhar muito. Após
ter comprado e vendido a biblioteca de Alfredo Pujol
em São Paulo, J.O. entronizou o Rio de Janeiro
como capital cultural do País meio século
antes da Rede Globo, lançando toda a obra dos
romancistas, poetas, críticos relevantes e até
do pintor Portinari, que foi capista da editora, e teve
por ela lançado, logo após a morte, um
livro de poemas.
Augusto Frederico Schmidt descobriu
Graciliano Ramos lendo o relatório do então
prefeito da remota Palmeira dos Índios, Alagoas,
e dele publicou o livro de estréia, Caetés.
Mas foi na editora de José Olympio que mestre
Graça se tornou conhecido nacionalmente. J.O.
fez as melhores edições de José
Américo de Almeida, embora não tenha lançado
a primeira edição de A Bagaceira.
Do Ceará projetou para a glória a jovem
Rachel de Queiroz, na editora a partir de seu terceiro
romance, Caminho de pedras. Guimarães Rosa perdeu
um concurso literário na Casa com os contos depois
editados sob o título de Sagarana, mas
foi a LJOE que publicou em 1956 o Grande sertão:
veredas e os dois volumes de Corpo de baile.
Gilberto Freyre, gênio de Casa grande e senzala,
lançado por Schmidt em 1933, e na José
Olympio a partir da quarta edição, ganhou
na “Casa” as suas melhores edições,
além de ter sido o primeiro diretor da coleção
Documentos brasileiros, inaugurada em 1936 com
Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque
de Holanda.
Pode-se discutir quem foi o maior
poeta brasileiro do século 20 - Manuel Bandeira
ou Carlos Drummond de Andrade -, mas o editor de ambos
foi J.O. E também foi ele quem fez as melhores
edições de Murilo Mendes, Cassiano Ricardo,
João Cabral de Melo Neto e Vinicius de Moraes.
Sua logomarca está impressa na primeira edição
de livros fundamentais da sociologia brasileira - como
Os parceiros do Rio Bonito, de Antonio Candido.
Assim como, no campo da ensaística, a Casa foi
pioneira, ao publicar clássicos como Machado
de Assis (Estudo crítico e biográfico),
de Lúcia Miguel Pereira, a série dos ensaios
literários de Álvaro Lins, ou o excelente
Um estadista da República, os três
volumes em que Afonso Arinos examinou a biografia do
seu pai ilustre.
Editor importante no começo
dos anos 1930, Augusto Frederico Schmidt lançou
os seus melhores livros de poemas e de memórias,
como O galo branco, na José Olympio. A
editora de J. O. publicou ainda as memórias de
Gilberto Amado e, depois que adquiriu a editora Sabiá,
editou Pedro Nava. A mesma editora que trouxe a lume
um dos mais badalados livros do gênero, Minha
vida de menina, de Helena Morley, publicou as memórias
de Brito Broca, de Café Filho, Juarez Távora
e Daniel Krieger.
José Olympio foi o hábil
comerciante que lançou os grandes nomes da literatura
e os livros dos poderosos de sua época, notadamente
Getúlio Vargas. Mas isso não o impediu
de editar adversários de Getúlio, caso
de Afonso Arinos. Os autores da Casa traduziam obras
de sucesso no exterior - como o best-seller Minha
vida, de Charlie Chaplin ou a obra completa do russo
Dostoievski, fartamente ilustrada, ou a do britânico
A. J. Cronin.
O livro de José Mario Pereira
revela pérolas como o recibo, assinado por José
Lins do Rego, documentando o recebimento de uma comissão
pela venda de livros para seu Estado natal, a Paraíba.
E as muitas dedicatórias afetuosas de autores
como Graciliano Ramos, Guimarães Rosa e Carlos
Drummond para J.O. Ele dá à saga de José
Olympio a dimensão que, apesar do muito que já
se escreveu sobre o editor, paulista de Batatais, ainda
lhe era devida. Da obra de pesquisa séria, bem-documentada,
um modelo a ser seguido no gênero, emerge um titã
e um exemplo definitivo de que uma cultura de verdade
não se faz com favores oficiais, mas com engenho,
esmero e coragem.
*José Nêumanne, jornalista e escritor,
é editorialista do Jornal da Tarde
O ESTADO DE S. PAULO
0 9/10/2008
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